03 fevereiro 2013

era só para tirar uma fotografia para o facebook...


Esta manhã levantámo-nos cedinho e fomos para a Komische Oper, que estava a vender roupas de espectáculos passados numa sala do foyer, e a servir bons pequenos-almoços na outra.
O Joachim queria uma roupa de pirata, e eu fui com ele como conselheira de moda (por estas e por outras, às vezes penso que devia ter um blogue...) e por causa do pequeno-almoço.
Num dos cabides, um grupo de vestidos chamava a atenção de todos, mas ninguém pensava comprar. Nem eu, que só vesti um por brincadeira, para fazer uma foto para o facebook. Eu com ele vestido, o Joachim a fotografar, nós os dois a rir do disparate. Depois eu com um casaco cheio de cobras por cima do corpinho nu, e mais risota.




À volta do Joachim fez-se um ajuntamento, parecia uma conferência de imprensa: imensas máquinas fotográficas viradas a mim, e uns repórteres de um jornal berlinense a pedir-me uma pequena entrevista. Para fazerem uma fotografia para o jornal pediram-me que fosse para o meio do foyer, e eu fui, sempre a rir, porque - dentro do vestido e sem me ver ao espelho - não me dava inteiramente conta da figura que estava a fazer. Foi então que, ao passar em frente às escadas onde uma enorme fila de pessoas esperavam a sua vez para entrar, vi pela primeira vez o olhar cobiçoso e despudorado dos homens perante uma mulher transformada em objecto. Não foi bonito.

Não comprei o vestido, mas devia ter comprado: armada com ele, e com uma máquina fotográfica escondida, podia fazer um magnífico álbum de retratos da miséria estampada no rosto humano. Os homens saberão a triste figura que fazem quando se esquecem que por trás de um corpo há uma pessoa que os vê?

**

A Komische Oper também me podia dar uma comissão pela publicidade: quando experimentei o vestido ainda não tinham vendido nenhum. Quando o fui devolver, já só sobravam dois.

12 comentários:

Helena disse...

:-)
Preciso deste fato para o Mardi Gras!

Helena Araújo disse...

Helena, custava noventa euros, e depois de eu o ter andado a passear por ali desapareceram quase todos...
Mas pode tentar fazer um vestido assim, e imprimir em cima uma vénus qualquer.

mar disse...

"Os homens saberão a triste figura que fazem quando se esquecem que por trás de um corpo há uma pessoa que os vê?" Recentemente, tenho vindo a colocar-me esta mesma questão cada vez mais frequentemente... quero acreditar que não e que, se a Helena tivesse comprado o vestido e saído à rua com a máquina fotográfica oculta, os envolvidos ficariam embaraçados se confrontados com o seu retrato.

Vejo um futuro brilhante para uma possível carreira enquanto consultora de moda e fashion blogger: apesar de não ter posado para a fotografia com 'boquinha de pato', já lançou uma tendência numa grande capital europeia. (Mas talvez não fosse má ideia mudar o título do post para 'Look do dia...)

Helena Araújo disse...

m.,
está visto: perdi a oportunidade de fazer a reportagem fotográfica da década! ;-)

Quanto ao look do dia, e tal: é verdade que às vezes mando uma ou outra pontinha de veneno, mas de facto não tenho de me misturar com esse mundo. Já há muito quem construa o seu sucesso à boleia desses blogues - nem sequer ia ser original.

Rita Maria disse...

Já se fizeram vídeos com essas câmaras escondidas, há um para decotes e um para rabos e são os dois bastante reveladores, apesar de as raparigas estarem vestidas em qualquer um dos dois. Uma youtubadela encontra-tos num instante (agora não tenho acesso).

Mas acho que mais triste que este "fazer cabeças rodar" é a sujeição da moda, do bom-gosto, da auto-estima, da gestão dos quotidianos femininos que se sujeitam e organizam em função do desejo masculino. E a forma como a sociedade atual convenceu as mulheres que o fazem de que são emancipadas e cheias de poder....

(ainda assim, o teu caso é especial - uma pessoa tem o direito de andar na rua sem ser comida com os olhos de forma agressiva, mas se for despida...por falar nisso sempre tive imensa curiosidade em saber o que me aconteceria se saísse despida para a rua. Chegaria à rua seguinte? entraria no Metro? Quando me parariam? Feliz ou infelizmente nunca tive coragem de fazer isso)

Helena Araújo disse...

Rita,

1. A ver se os encontro - a ver se são como os que me aconteceram no sábado passado.

2. Este teu parágrafo lembra-me que ando há que tempos para falar disto contigo: porque é que as mulheres têm o direito (e quase a obrigação, como dizes) de andarem por aí semi-nuas, e se diz que isso é um acto de estética e não de provocação? Porque insistem nessa estética, sabendo que há por aí muito macho que não se sabe controlar? Bem sei que estou a um milímetro do "foi violada? quem a mandou andar na coutada do macho latino nesses preparos?", e não quero de modo algum justificar a violação ou qualquer abuso. Mas parece-me que há algo perverso neste acto de vestir roupa estremamente provocadora e exigir dos homens que não reajam como provocados.

3. O meu caso é especialíssimo: eu estava duplamente vestida: com o meu vestido vermelho de mangas compridas, e sobre ele um vestido comprido sem mangas, sobre o qual havia um corpo nu (tipo Cranach) estampado. Não era o meu corpo, nem de perto nem de longe, mas os gajos não souberam dar-se conta disso.
(Hei-de pôr uma câmara escondida por trás de uma das vénus de Cranach, a ver se também fazem o mesmo olhar grotesco.)
Se tu saísses à rua despida, em Charlottenburg provavelmente só serias parada pela polícia. Já em Neukölln... não chegavas ao Metro, não.
Uma vez, em Weimar, fui atrás de uma rapariga ia com uma mini-saia que mais não era que um cinto (fininho). Com fio dental ou sem cuecas, não sei, mas via-se bem uns 5 centímetros (ou mais) das nádegas. Os homens ficavam a olhar disfarçadamente e em silêncio, faziam discretamente sinais aos outros para verem também. Nem sequer um assobio se ouviu.

Rita Maria disse...

Acho que no sábado passado às tantas te aconteceu o mesmo que acontece a essas miúdas - sentem-se muito felizes no centro das atenções e só se apercebem tarde demais que é pelos motivos errados :)

Quanto aos homens, não o leio assim - elas querem provocar, claro que querem, porque lhes ensinaram que despertar desejo é beleza, sucesso, poder, por definição operativa, não há outra. E isto não pode ser discutido sem discutirmos uma cultura que impõe a todas estas miúdas a insegurança e a insatisfação como forma de estar - aí só a validação externa conta.

Mas querem provocar impunemente (isto é, sem consequências físicas diretas) e têm esse direito - como um aluno provoca a professora primária e tem o direito de não levar um par de estalos, como alunos que se manifestam sem esperarem gás pimenta, como um funcionário público que diz mal do ministro e espera não ser despedido, como alguém que age contra os conselhos de um médico e espera que depois este o tente salvar ainda assim.

Quanto a Neukölln e Charlottenburg, não acho que fosse assim a preto e branco, mas sem investigação nada feito.

(mas o Cranach era muito jeitoso, achei eu)

Helena Araújo disse...

Rita,
como é que me conheces tão bem? (hehehe)

Quanto a provocar impunemente:
Dás exemplos de alguns comportamentos legítimos e outros transgressores, e reacções que devem respeitar a proporcionalidade (é óbvio que a professora vai meter o aluno na ordem, mas sem ser à chapada, e que o ministério pode instaurar um inquérito ao funcionário sem que isso represente despedimento, etc.)

Quanto a vestir-se de uma forma provocante: é uma transgressão, ou um direito legítimo? E qual seria a reacção proporcional?

Ou aceitamos como legítimo um comportamento provocador, e impomos aos provocados que não se sintam provocados?

Claro que daqui a nada estas minhas dúvidas encontram uma resposta. Basta aparecer alguém a dizer que exibir o cabelo é um comportamento provocador, e portanto as mulheres têm é de usar todas um lencinho na cabeça...

Rita Maria disse...

Impomos-lhes que, quer se sintam, ou não provocados, subordinem a provocação ao respeito pelo outro. É isso, acho eu, e parece-me justo :)

Helena Araújo disse...

Eu devia era ficar calada, mas não resisto: e o respeito pelo outro não devia implicar também não vestir roupa excessivamente provocadora?

(O pior é que cheguei a um ponto em que não sei de que estou a falar: calcões curtinhos, com meias opacas e botas altas é roupa provocadora que se devia evitar por respeito aos desgraçadinhos dos machos? Ou o que se devia evitar é mostrar a pele de "certas partes" do corpo?) (outro dia um amigo fez um comentário muito deselegante sobre o meu decote, que eu não achava nada de mal, e fiquei a pensar que para aquele ficar aquietado o melhor era vestir-me logo de freira...)

Gi disse...

Esta discussão é muito interessante. Julgo que se estivesses em Portugal, Helena, e vestisses um desses vestidos, a reacção à tua volta não seria igual (não haveria pessoal a fotografar, e haveria muito mais a olhar lubricamente).
O certo é a dificuldade em estabelecer limites. Entre o direito da rapariga a usar mini-saia e o do homem a não ser provocado, estamos cheias de sorte em não termos de usar burka.
Outro ponto, acho eu, é que há gente que se sente provocada por quem não tem intenção de provocar. Acredito que muitas mulheres violadas se vestem modestamente.
Outro ponto, ou o mesmo, sei lá, é que a provocação pode ser uma atitude. E o ser provocado uma disposição.

Helena Araújo disse...

Pois é, Gi - se forem os homens a decidir o que devemos sentir para eles "não se lembrarem de coisas"...
E também é verdade que
- às vezes nem a burka safa uma mulher de certos homens,
- nem que a mulher saísse à rua nua, isso não dá a homem nenhum o direito de a violar.