07 fevereiro 2013

contagem decrescente



Tal como o Público conta hoje, Angela Merkel mantém "total confiança" na ministra alemã da Educação, após esta ter perdido o título académico de doutoramento (recebido há 33 anos) devido a plágio.

Ontem, no noticiário da ZDF das 21:45, o tema foi tratado de uma forma que me surpreendeu tanto, que me dei ao trabalho de traduzir para aqui (já sabem: raaapido, raaapido).

O apresentador Claus Kleber começou assim:

"Boa noite. Se há 33 anos Annette Schavan, num assomo de loucura, tivesse matado o seu orientador de tese, em vez de fazer batota com citações, esse crime, entretanto, já teria prescrito. O crime de não pôr aspas em citações não prescreve nunca. Pode-se discutir se é justo, mas é a Lei. Um pequeno pé-de-página: a comparação com o homicídio não é da minha autoria - tem surgido muitas vezes no actual debate. A ministra da Educação vai perder duas letras, D e R, tal como foi decidido pela sua Universidade. Annette Schavan vai recorrer aos tribunais, mas com poucas hipóteses de ganhar, segundo dizem alguns juristas com experiência nestas áreas, porque os tribunais não costumam decidir contra o parecer das universidades. Levanta-se a questão de saber se a ministra, até agora muito apreciada por todos, ainda é politicamente viável. Em Berlim, o debate está cada vez mais aceso."

A seguir, passam uma curtíssima reportagem de Annette Schavan durante a sua viagem à África do Sul. Dizem que a ministra se sente atingida em cheio, e que vai lutar pelo seu lugar e sobretudo pelo seu bom-nome. A sua breve declaração às câmaras de TV: "Não aceito a decisão da Universidade, vou recorrer aos tribunais. Dado encontrar-me em conflito jurídico com essa Universidade, peço que compreendam que não farei mais declarações sobre o assunto. Muito obrigada"
No filme pergunta-se: depois destas acusações de plágio, será que a representante suprema da Educação e da Ciência no nosso país ainda pode manter esse posto?
Aparece então a imagem do porta-voz da Chancelaria, que afirma que a chanceler tem "toda a confiança" na ministra, a qual tem feito um excelente trabalho, e que após o regresso desta da viagem à África do Sul terão a oportunidade de conversar calmamente sobre o assunto. Comentário do jornalista: "Isto soa a recuo organizado. Merkel já deixou cair Röntgen, zu Guttenberg e Wulff depois de lhes ter oferecido o seu apoio. A ministra e a chanceler são amigas, mas Merkel é também pragmática, e vai deixá-la cair se se der conta que o caso lhe pode sair caro nas eleições que se aproximam."

Falam ainda da reacção bastante discreta de outros ministros, e lembram que, no caso zu Guttenberg, Annette Schavan não foi nada discreta. Na altura, a ministra atingiu-o profundamente com a frase "não consigo esconder que me sinto envergonhada". Pouco depois ele demitia-se, e toda a Alemanha viu imagens do sorrisinho que Merkel e Schavan trocaram quando a chanceler recebeu por sms a notícia da sua demissão (na imagem acima, fonte: Bild). A CSU, o partido da coligação ao qual Guttenberg pertence, não lhe perdoou essas atitudes.
A reportagem continua: Schavan gosta de falar em rendimento, excelência e elite. Como é que uma pessoa acusada de aldrabar poderá continuar a falar nestes termos? Tornou-se o flanco descoberto do seu partido, num difícil ano de eleições. A oposição já começou a afiar as facas. Andrea Nahles, dos socialistas, exige a sua demissão por já não poder ser um modelo. [Um dia antes, Sigmar Gabriel, presidente do SPD, tinha dito, como reacção à notícia da decisão da Universidade, que lamentava imenso, porque "todos temos a maior consideração  pelo trabalho e pela competência de Annette Schavan", ou algo parecido. Gostei de ver.]
Annette Schavan pode recorrer da decisão, mas o tempo da Justiça é muito mais lento que o tempo da Política. A decisão sobre o seu cargo está adiada apenas até sexta-feira, dia em que ela regressa de África.

O noticiário prossegue com uma entrevista a Bernhard Kemper, que fala em nome dos cientistas alemães. As respostas dele são as óbvias, mas as perguntas com que Claus Kleber lhe interrompe o discurso são impressionantes:
- Parece-lhe que era mesmo inevitável retirar-lhe o título?
- Perguntando de outro modo: teria sido possível evitar?
- Podemos pensar que a Universidade também tem culpa, porque era obrigação do orientador da tese dar-se conta que a doutoranda estava a copiar descaradamente uma grande quantidade de textos. Como pode a Universidade julgar, se também falhou?
- Para os cientistas alemães é completamente impensável que uma ministra, cuja competência tem sido largamente apreciada, se mantenha no cargo devido a um erro que cometeu há mais de trinta anos?
- Trinta anos de trabalho com tanto sucesso justamente na área da Ciência e da Investigação não deviam valer mais do que isso? Parece-lhe que os actuais doutorandos vão sofrer dores de alma por saber que a ministra cometeu esses erros nessa fase da sua vida?

A câmara passa para o repórter em Berlim: os membros do governo mantêm-se em silêncio, para respeitar Annette Schavan e para não dar ainda mais que falar. Mas também nenhum abre a boca para afirmar que ela deve continuar no lugar. Lembra ainda que a "inteira confiança" da chanceler vale pouco:  zu Guttenberg também tinha a sua "inteira confiança" pouco antes de se ver obrigado a demitir-se. No fim, serão pesados os interesses, e será tomada uma decisão. Berlim está a ganhar algum tempo, esperando pelo fim da viagem à África do Sul, mas mal a ministra regresse haverá uma conversa com a chanceler e a decisão será tomada.

**

Estava capaz de apostar que o caso não se arrasta sequer até Sábado. E tenho pena. Compreendo que tenha de ser, mas a Alemanha vai perder uma excelente ministra.
Já não é a primeira vez: há alguns anos, perdeu uma excelente representante das Igrejas Protestantes, que ia a conduzir embriagada. Nessa altura, as pessoas chegaram a ir para a igreja rezar para que ela não se demitisse.
Isto é um país engraçado.

13 comentários:

Unknown disse...

Helena,
gostei de ler como você noticia toda essa grande enrascada em que se meteu a Ministra da Educação...Político - um ser igual em todo o mundo, salvo raras exceções, que eu acredito que haja, com certeza....
Um grande abraço de uma luso brasileira em Portugal

Pedro disse...

Não é só a Universidade (e o orientador) que terá culpas, também o júri que presidiu às provas de defesa e que habitualmente são de outras universidades.

A questão é que é impossível estar a par de tudo o que é publicado, para se saber se há plágio ou não. Hoje em dia é mais fácil, com sistemas de detecção de plágio que muitas universidades têm. Mas há com certeza muitas mais teses hoje que há 30 anos atrás.

Eu próprio fui vítima de plágio. A minha tese de mestrado foi copiada ipsis verbis, embora, versão manta de retalhos, para 15 páginas de outras tese de mestrado. Não fui o único, pois encontrei na mesma tese outros exemplos de apropriação abusiva de autoria. Mas só fazendo o confronto entre os dois textos é que consegui ter a certeza. À primeira leitura notei algumas semelhanças com o meu discurso, mas não pensei que fosse. E era.

(a pessoa em questão recebeu durante o curso uma bolsa de mérito, concedida por uma entidade bancária. Deveria ou não ser restituída?)

Helena Araújo disse...

Filomena,
Obrigada. Mas olhe que não acredito que os políticos sejam todos iguais. E que sejam todos tão maus como se diz. Esta, por exemplo, tem tido um excelente desempenho. De tal modo, que as pessoas têm mesmo pena que ela se vá embora.

Helena Araújo disse...

Pedro,
o tal entrevistado também disse que, não negando que um erro destes é uma vergonha para a Academia, na altura não havia meios para controlar como há hoje. Seria possível controlar tudo, é certo, mas só com recurso a métodos extremamente dispendiosos. Além disso, o trabalho entre orientador e doutorando baseia-se na confiança - o orientador não pode ser um polícia que parte do princípio que em cada linha do trabalho há uma pista para um crime.

Se fosse comigo, acho que nem reparava. Às vezes leio coisas que escrevi aqui neste blogue e me parecem de outra pessoa qualquer...

Uma bolsa de mérito para copiar? Olha, digo-te já: não, não deve ser restituída. E: por favor, alguém me arranja uma bolsinha dessas? ;-)

Pedro disse...

Óoo! Vi primeiro.

A questão que se passa com os plágios em mestrados e doutoramentos (que são mais que as mães e muito abafados pela Academia, pelo menos aqui em Portugal) é que, ao contrário do que acontece com os artigos de revista (para mencionar outros casos famosos da nossa praça), conferem um grau académico, grau esse que imprescindível para o desempenho de certos cargos (não necessariamente o de ministro - o que levanta também a questão, o que é mais grave? plagiar ou fazer um curso ao fim-de-semana ou receber equivalências a cadeiras que não se fez ou até mesmo falsificar certificados de habilitações?

Gi disse...

Ainda hoje tive uma acesa discussão sobre o plágio e a importância da atribuição da autoria.
Para mim o plágio é uma coisa nojenta, é pretender passar pelo que não se é (tanto como as equivalências do Sr. Relvas ou os diplomas do Sr. Sousa) mas o meu interlocutor, pelo contrário, não acha nada importante atribuir a autoria de fotos, frases ou ideias. Se bem o percebi, acha que passam imediatamente a fazer parte do património da humanidade, e por isso lhe é lícito usá-las como se fossem dele.

Helena Araújo disse...

Pedro, será que não se arranjam duas bolsitas?

Gi, nem tanto ao mar, nem tanto à terra - diria eu.

Pedro e Gi,
de que falamos quando falamos de plágio?
Andei a ver alguns exemplos. Ela é acusada de ter "roubado" segmentos de frases do género: "o que provocou uma importante crise social e política". Ou de ter escrito de forma ligeiramente diferente frases de outros autores.
Num trabalho de 350 páginas, parece que o único erro realmente grave aconteceu na página 329 (salvo erro) em que (li pela diagonal, que a minha vida é mais que isto) ela foi buscar as ideias de um autor A, e citou o autor B, referido por A, como se tivesse sido ela própria a descobrir o B, só referindo o A uma única vez.
Isto é muito diferente do que fez o Guttenberg, que copiou parágrafos e páginas inteiras.
Não é correcto - mas é realmente assim tão grave?

Se formos passar todos os doutoramentos pelo mesmo crivo, quantos vão sobrar?

Para responder à tua pergunta, Pedro: por ordem decrescente de gravidade, diria que:
1. plagiar a 90%, como o Guttenberg, ou recorrer a um ghost writer
2. receber um curso inteiro por equivalências, porque isso é o grau zero da Academia (um curso superior não é aprender a saber fazer, é aprender a pensar sobre)
3. fazer num fim-de-semana as quatro cadeiras que faltam para terminar um curso
4. usar segmentos de frases ou aproveitar-se do trabalho de pesquisa de outros sem os referir correctamente (no caso da Schavan, depois de fazer questão de não deixar passar nada nada nada, deu um 12%; os próprios caçadores de plágios internéticos estão em desacordo quanto a esta questão - muitos dizem que não há motivo para esta acusação)

E vocês, que dizem?

Gi disse...

Frases como essa que citas podia bem ter saído da cabeça de qualquer pessoa. Não sei porque concluíram que não era dela, mas enfim, eu não li a tese.

Concordo contigo que nem todos os "plágios" têm a mesma gravidade. Na música, se não me engano, é permissível ter um certo número de compassos iguais. E ninguém chateou Beethoven por se apropriar de temas de Mozart ou Haydn.

Mas não me digas que a maioria dos doutoramentos não resistiria a esse crivo. O que aconteceu às aspas, as pessoas não conhecem? E às "end-notes"?

Helena Araújo disse...

Gi,
podes crer que ela usou e abusou das aspas e das notas de pé-de-página. Mas também houve alguns casos em que não o fez. Só que está muito longe de ser os 12% de que a acusam.
Fui outra vez ao schavanplag, e nota-se bem a vontade de lhe pôr defeitos. Vi três páginas completamente à sorte, e as acusações eram assim:
1º exemplo: Frase (resumidamente) de Schavan: "Freud escreveu sobre o tema x no texto A e no texto B". Acusação: falou dessas duas obras de Freud sem ter citado um autor que as referiu anteriormente, limitando-se a incluí-lo na bibliografia.
2º exemplo: A citação é correcta e está perfeitamente identificada, mas não disse que tinha encontrado essas citações no trabalho de outro autor.
3º exemplo: fez uma afirmação não trivial sem indicação de literatura.

Gostava mesmo de ver todos os trabalhos feitos há 30 anos (sem computador e sem internet) a serem passados por este crivo apertado. Gostava mesmo de saber quantos é que escapavam.

Pedro disse...

Pelos exemplos que dás (e que desconhecia), concordo contigo. O que não falta aí , sobretudo em bibliografia mais antiga, são as mesmas ideias escarrapachadas, embora ditas por palavras diferentes. E isso supostamente não será plágio.

Helena Araújo disse...

Pedro, fiz uma nova lista, mais completa, a partir de artigos nos jornais. Parece que é acusada de:
- Fazer citações de autores referindo o próprio autor, mas sem ser a partir do original. Tipo “Freud afirma que blablabla”, tendo tirado essa afirmação do livro de outro autor.
- Citar com pouca limpeza, do género: começa a página falando das teorias de Fulano, e escreve as ideias dele sem identificar exactamente as frases que são dele e as páginas de onde as tirou. Também cita Sicrano, que já tinha sido referido por Fulano, sem dizer que Fulano o referiu.
- Copiar frases de outros autores, mudando algumas palavras ou a ordem dos elementos no texto.
- Copiar segmentos de frases (algumas das que vi eram coisas absolutamente triviais)
- Fazer afirmações “não triviais” sem mencionar autores que debatam esse tema.
- Omitir um ou outro autor na Bibliografia, que terá sido mencionado no texto.

Num artigo de opinião, um professor universitário diz que há erros, mas não se pode dizer que há intenção de plágio. Tanto mais que a maior parte desses erros de citações ocorrem justamente no capítulo em que ela sintetiza em que ponto está o debate sobre esse tema. Quer dizer: o próprio nome do capítulo informa que ela está a falar do trabalho dos outros.

Mas não concordes comigo, porque eu não sei tudo. Só me pergunto se alguém está capaz de escrever um trabalho que não seja chumbado pelo pessoal da caça ao plágio. E se a Academia não lhe retirou o título por se sentir pressionada pelo barulho da internet. Acho tudo isto muito triste.

Gi disse...

Muito interessante. Até posso supor que em qualquer dos exemplos que deste, se ela tivesse ido verificar o original depois de ler a citação noutro autor, pudesse não referir este último só para simplificar e não encher mais o trabalho de referências.
Mais uma vez, não conheço a senhora nem a tese, por isso posso opinar sobre generalidades mas não sobre o caso particular.

Helena Araújo disse...

Gi,
eles descobriram que ela tinha usado citações de outros autores porque eles citaram com erros, e ela reproduziu os erros. Ou seja, não foi procurar a frase no texto original.
Isto é roubo do trabalho intelectual de terceiros? Se eles tivessem citado correctamente, não era, porque ela disse quem era o autor da frase.
E é assim tão grave partir do princípio que a citação estava correcta? Sobretudo num tempo em que ir procurar no original implicaria ir a uma biblioteca e ler todo o texto até encontrar a tal frase. Hoje em dia metes numa máquina de pesquisa e em menos de um segundo encontras.
Bem, e se já estamos a falar de erros nas citações: como é possível a Academia aceitar trabalhos onde os autores são citados incorrectamente? (refiro-me aos trabalhos dos quais ela copiou a famosa citação)

Mas a questão de fundo é esta: ela trabalhou com algum descuido, ou houve uma intenção de plágio? O descuido seria tolerável (sobretudo se ela o assumisse e pedisse desculpa), a intenção de plágio não. Mas onde se traça a linha separadora entre o descuido e o plágio deliberado?

Hoje falei sobre isso ao jantar. Só uma pessoa achava que lhe estavam a fazer uma perseguição injustificada. Os outros 3 casais (todos eles antigos diplomatas) achavam que já devia estar na rua. Diziam eles:
1. Mesmo que todos façam o mesmo (e sabe-se que erros desse tipo há muitos por aí - é como ser apanhada a conduzir depois de ter bebido), é o azar de quem foi apanhado. Não gosto nada deste argumento, porque significa que a Universidade faz dela um caso exemplar que permite manter as aparências em relação aos outros.
2. Na Alemanha não se perdoa a quem se ri de alguém e depois é apanhado no mesmo erro. Ela riu-se do Guttenberg quando ele perdeu o título, de modo que agora a sociedade é implacável com ela. (Tenho pensado muito neste argumento, porque o que mais vejo por aí é pessoas a cuspir para o ar com uma extraordinária arrogância, como se pensassem que nunca lhes pode cair em cima)

Mas também me disseram como era trabalhar numa tese há 33 anos: a procurar os livros em várias bibliotecas, a trabalhar com fichas manuais, a escrever o trabalho à máquina. Se fosse preciso acrescentar umas aspas e uma nota de pé-de-página, isso podia implicar voltar a escrever as páginas seguintes, até ao fim do capítulo.
Por isso me pergunto quantas das teses que por aí andam não terão erros semelhantes, porque naquela época isso seria algo "que todos faziam". E, se calhar, quantos trabalhos escritos hoje?

Depois a conversa foi para a nossa sociedade tão transparente. Sabe-se tudo sobre qualquer pessoa, e as informações espalham-se a uma velocidade incrivelmente alta. Quem será capaz de se manter à margem do cerco que a internet permite?
Mais: quem será capaz de viver permanentemente de tal maneira que nunca possa ser objecto de perseguição na internet?
(Os meus vizinhos diziam que basta cumprir as regras. O que parece fácil, mas não é: uns minutos antes tínhamos estado a debater se o Fox pode fazer chichi nos jardins em frente aos prédios, ou levantar a perna contra a fachada dos edifícios - eles achavam que sim, que pode, mas hoje uma desconhecida ralhou comigo por causa disso - e, se quisermos ser realmente correctos, ela tem razão: não devia haver cães a fazer chichi nas ruas, não é nada higiénico, mas é algo que muitas pessoas deixam acontecer.)

Entretanto: pensava que por esta hora ela já se teria demitido, mas ainda não. Isto está a ir demasiado devagar.