25 janeiro 2013

Mozart: uma paródia para a Segurança Social

O programa do concerto de hoje na Filarmonia anunciava uma paródia. Uma auto paródia, diziam eles: Mozart parodiando-se a si próprio.
Com tal apresentação, uma pessoa lembra-se do Amadeus e fica à espera do melhor. Mas depois o programa explica: no Léxico Musical de Heinrich Christoph Koch, de 1802, está escrito que "se uma peça para canto é usada para criar outra, com a mesma música mas outro texto, ou um texto noutra língua, esta segunda peça é chamada Paródia". Ou seja: acenaram-me com um "falso amigo", mas não me importei, porque a cantata David Penitente KV 469, com textos em italiano a substituir os alemães, tem a música da Missa em Dó Menor. E como eu gosto desta Missa!

E porquê uma paródia? Porque em 1785, ano em que esta peça foi feita, Mozart se debatia com uma terrível falta de tempo. Vivia o auge do seu sucesso em Viena, era extremamente requisitado como pianista e compositor, corria de um evento para o seguinte. A Wiener Tonkünstler Sozietät, que organizava anualmente um concerto de beneficência a favor das viúvas e dos órfãos dos músicos, encomendou-lhe uma peça. O compositor não tinha tempo para nada, mas estava muito interessado em tornar-se membro dessa Sociedade de mútuo auxílio, pelo que regressou à Missa já quase terminada, aproveitou algumas partes mudando-lhe a letra, e acrescentou outras. Reduce, reuse, recycle - dir-se-ia hoje. E muito bem, porque essa Missa estava votada ao esquecimento. Depois de uma primeira apresentação em Salzburgo, dificilmente teria hipóteses de ser repetida, porque o Kaiser Joseph II só excepcionalmente permitia música deste tipo nas igrejas. E o prazo apertava.



O resultado é David Penitente, com duas árias novas (uma para tenor e outra para a primeiro soprano) e a inclusão dos solistas no final do coro. A peça foi apresentada a 13 e a 15 de Março de 1785, e o maestro foi o próprio Mozart. O problema é que todos os membros da Sociedade eram obrigados a participar, pelo que entre coro e orquestra havia 150 pessoas em palco, com os cantores à frente e a orquestra atrás - o que deve ter dado um efeito, no mínimo, estranho. Talvez por isso lhe chamem paródia, afinal.
Mas a Sociedade ficou muito satisfeita, é o que interessa. Como prestação para a Segurança Social, parece-me que dificilmente se podia fazer melhor. E agora me ocorreu que os empresários portugueses também podiam fazer o mesmo: quando as Finanças vão atrás deles por causa dos pagamentos em atraso, os devedores podiam tentar dar-lhes música. (Enfim, desconfio que é mais um daqueles casos em que inventei a roda com alguns anos de atraso...)

Tudo teria acabado em bem, não fora Mozart ter-se atrasado a entregar uma cópia do seu registo de baptismo, o que fez com que não conseguisse entrar para a famosa Wiener Tonkünstler Sozietät. Por acaso agora gostava de saber se esta, depois de embolsar os concertitos, não cuidou da viúva e do filho do compositor.

A cantata David Penitente e outras peças de Mozart foram interpretadas por estes dias pela Filarmónica de Berlim com o maestro Louis Langrée, as sopranos Jane Archibald (*suspiro*) e Ann Hallenberg, e o tenor Werner Güra. O concerto de hoje, o último com este programa, foi transmitido pelo Digital Concert Hall.

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Secção Caras

O maestro era simpático. Não interpretava Mozart como me dá jeito, mas era simpático e gracioso. Sorria com covinhas, passou o concerto todo com covinhas. Bem, se eu estivesse a dirigir o Emmanuel Pahud e o Albrecht Mayer, também sorria a fazer covinhas o tempo todo (e é só para mencionar os que estavam lado a lado, mesmo à frente dele). Como será que estes maestros se sentem quando estão naquela sala, a dirigir aquela orquestra? Será um bocadinho como a angústia do guarda-redes antes do penalty, mas durante o concerto inteiro?

A Jane Archibald tinha um vestido assimétrico muito bonito, a Ann Hallenberg tinha um num tecido como eu também tenho e ninguém cá em casa gosta. Não reparei na roupa do tenor, não sei porquê.

Fotografei com o telemóvel, tipo à queima-roupa porque estava a tentar fazer de conta que não era eu, que nem estava ali.



3 comentários:

Paulo disse...

Também gosto muito da Missa. Aliás, quando a ouço, fico com vontade de ser crente (ouvindo agora o David Penitente).
Ontem também tive direito a Mozart, mas foi o Requiem, na Gulbenkian.

Paulo disse...

Ainda em relação à Missa, não resisto a mostrar-te esta. Talvez a minha preferida, com Gardiner, Barbara Bonney, Anne Sofie von Otter... no Palau de la Música Catalana.

Helena Araújo disse...

Eu fico com vontade de ser crente (hihihi) quando ouço certas árias de Bach. "Mache dich, mein Herze, rein", por exemplo.
Obrigada pelo link! Não o vou ouvir já, porque está um sol lindo sobre a neve fresca, e há que aproveitar. Mas lá mais para o fim do dia, não me escapa.
E que tal o Requiem de ontem?