25 janeiro 2013

Gisela May na Komische Oper



Gisela May, a famosa intérprete de Brecht/Weill, que nasceu em 1924 e durante mais de trinta anos trabalhou na companhia Berliner Ensemble, esteve ontem na Komische Oper, para nos oferecer os melhores momentos da noite. Momentos inesquecíveis.
Mal entrou no palco, o público levantou-se para aplaudir. E não paravam. Ela fazia-nos sinais, já chega, deixem-me falar, não me atrasem. E começou a falar, sem microfone - um silêncio extraordinário na sala, e a voz daquela mulher de quase noventa anos a encher todo o teatro. 

Reproduzo de memória:

"Há tempos, o director da Komische Oper veio falar comigo - que precisavam de mim para animar o público a vir ouvir a música de Kurt Weill. Combinámos que eu viria duas vezes, para cantar um pouco, conversar, e ler algumas passagens da minha biografia. Mas este palco é enorme, era preciso "vesti-lo". Fomos os dois para o "fundus" do teatro, mas ali só encontrámos o guarda-roupa. Fomos então a um armazém de móveis, e descobrimos uma mesa muito catita. De lá fomos para outro armazém, onde havia cadeiras, e trouxemos uma cadeira muito interessante, muito especial. Juntaram as duas peças aqui no teatro, e quando eu me sentei ficava com a mesa à altura do nariz (risos). Ninguém se tinha lembrado de verificar a diferença de alturas. De modo que há dias eu disse ao director: desta vez vamos fazer à minha maneira. Eu trago alguma coisa lá de casa. E trouxe este sofá (sentou-se). Normalmente sento-me aqui deste lado, e ali estendem-se um ou dois gatos, a ver as chatices da televisão comigo."
(nesse momento entrou Ulrich Lenz, o jovem director da ópera de Hannover, que vinha para conversar com a cantora)
- Desculpe interrompê-la - dá-me licença de me sentar no seu sofá?
Ela toda coquete:
- Por quem é! Bem gostava eu que se sentasse nele mais vezes!

Ele ia falar do princípio da sua carreira, e ela começou ainda antes: de como na sua família gostavam de ouvir a Ópera dos Três Vinténs, e de como se lembrava bem de terem de a ouvir em surdina, quando Hitler subiu ao poder, com medo que os vizinhos os denunciassem. "Tempos nada felizes", dizia ela, pensativa. Tinha dez anos.
Ulrich Lenz entrava: e como podia ela adivinhar que se tornaria uma das mais célebres cantoras dessa ópera, que a considerariam a melhor intérprete de sempre de Os Sete Pecados Mortais, que várias gerações associariam o seu nome à Mutter Courage?

Contou mais: da fuga de Weill e Brecht, das suas dificuldades para recomeçar a vida nos EUA:
"Os textos de Brecht são intraduzíveis. Para manterem em inglês a riqueza do alemão, ficava um inglês que ninguém entendia. Mas eles estavam com a corda na garganta, tinham de ganhar dinheiro. Os nazis, depois de perseguirem os seus artistas e os expulsarem do país, congelavam as suas contas bancárias. Eles no estrangeiro, sem trabalho, sem um tostão! O Brecht ainda se safou, porque a Helene Waigel tinha muito sentido de negócio, tratou logo de transferir os direitos dele para o ocidente. Mas o Weill, coitado..."
Falou também do seu primeiro encontro com a Lotte Lenya, do modo simpático como esta lhe ofereceu o seu próprio papel de Anna em Os Sete Pecados Mortais. Lembrou concertos nos EUA [e eu a pensar: eh, lá, se a RDA a deixava sair do país, como seria a sua relação com o regime? Adiante...] e afirmou que não teria sido difícil levar também os músicos de Berlim, mas os sindicatos americanos faziam o seu trabalho, e diziam que não havia motivo para trazer músicos alemães, que nos EUA também os havia ["músicos de todo o mundo: uni-vos"?] e...
- Ouça lá, eu não estou aqui também para cantar?

Pôs-se de pé, dirigiu-se para o piano, começou a cantar. A voz muito expressiva, ainda muito segura. Ainda inteiramente esta mulher:


O pianista, Adam Benzwi, é um excelente acompanhante: sensível e flexível, murmurava as palavras à medida que tocava as frases musicais. Sem tirar os olhos da Gisela May, muito atento. A meio de uma canção, ela disse "e agora esqueci-me do resto do texto", e ele, sem parar de tocar, sem parar de sorrir, disse-lhe a frase seguinte, ela recomeçou a cantar, ele fazia-lhe de ponto enquanto tocava. Um amor de rapaz. E ainda por cima é bonito (e eu tinha os binóculos, hehehe).

(foto)

(foto)

Saíram do palco de braço dado, ele levava os ramos de flores de ambos, a sala inteira a aplaudir de pé.
O programa incluía outras peças, mas a noite de ontem foi da Gisela May.
Sinto-me grata por tê-la visto ainda esta vez. Não é todos os dias que me cruzo com o século XX.

2 comentários:

Paulo disse...

Isso foi um momento histórico, Helena. Guarda-o bem, que Gisela May é, como se costuma dizer, uma lenda viva.

Helena Araújo disse...

Pois é, Paulo. Viva, e com imensa vida. Gostei muito de a ver assim, divertida, com enorme presença de espírito, cheia de força.