03 janeiro 2013

duas semanas de festa ou: a minha vida dava um filme



Para o nosso Natal, anunciou-se o cozinheiro sueco. Ficámos todos contentes - raramente nos sentimos tão descansados na antevéspera da ultimate battle na home front. Ele ia avisando "estamos em Colónia, estamos em Düsseldorf, chegamos amanhã a Berlim".
Comprei os gansos, preparei a casa - tudo a postos para um fantástico Natal, um autêntico The Muppet Show, mas para melhor.




O cozinheiro sueco chegou-nos num estado lastimável. Senti-me como no Shining, quando o miúdo chama o cozinheiro, este põe-se a caminho, nós aflitos na cadeira do cinema começamos a acreditar que tudo se vai resolver, o homem entra no hotel - e zimbas!, mais não conto.
O nosso cozinheiro tossia desalmadamente (parecia que se estava a preparar para ir a um concerto na Filarmonia), e meteu-se na cama durante quase dois dias.
Nós entregámo-nos ao carpe diem, e de que maneira!
No sábado antes do Natal assistimos a um pequeno concerto do Carlos Bica, sentados a dois metros dele. O que andam a fazer os realizadores, que ainda ninguém se lembrou de filmar a coreografia dos seus dedos quando toca "Believer"? (se me deixassem mandar...)



Depois, já bem tarde, levámos um amigo a casa (o que poucos fazem, em Berlim - quando muito, leva-se até à estação de S-Bahn mais próxima). Despedimo-nos na rua de casas antigas em tons pastel, num silêncio emoldurado pela neve abundante, ele em frente à porta antiga, o chão branco, dissemos "feliz Natal" - o Wim Wenders mora ali, mas é claro que não estava a passar naquele momento para se inspirar para um filme natalício daqueles lindos que se faziam ainda eu não era nascida. Nasci tarde de mais, é o problema, e além disso não me deixam mandar...

Do cenário de perfeito Natal seguimos para a Russendisko, para mostrar aquele bocadinho de Berlim aos amigos americanos. O Wladimir Kaminer já tinha ido para casa, mas ainda ficámos na conversa com a Olga, que nos contou da festa do fim-do-mundo que fizeram na datscha. Ela tem uma maneira muito engraçada de falar do fim-do-mundo, quer-me parecer que nunca passou por nenhum ao vivo.

Depois fomos dormir. No domingo chegou mais uma visita, uma australiana. Ao jantar, rimos a bandeiras despregadas com as histórias loucas que ela contava sobre o seu país: daquela vez que a mãe encontrou uma cobra verde dentro da torradeira, ou quando encontraram uma cobra venenosa no jardim mas ela não a matou porque era venenosa mas não era a pior de todas, e comia os bichos que atraíam as piores; mas depois viu um sapo e desatou aos gritos "mata! mata!", porque aquele bicho ataca os cães e é um festim para as cobras piores, e o namorado (americano, urbano) perguntava surpreendido: "não matas cobras mas matas sapos?! que país é este?" O pai riu-se tanto que se engasgou a sério, o filho disse "não se preocupem, temos aqui um médico que sabe o que é preciso para ligar ao 115". Foi uma sorte não ter havido mais engasgados naqueles jantares.



Ressuscitámos o nosso cozinheiro o melhor que pudemos, e fomos à ópera - a Raposa Matreira, de Leoš Janáček. Pena que tenham posto mais empenho na encenação que nos cantores. As cenas dos insectos na floresta eram um autêntico sonho, um miúdo-sapo encantou-nos com a sua história em forma de diálogo, mudando a entoação da voz de forma perfeita. Mas os cantores, ai! A última ária, por exemplo: se é para cantar sobre o sentido da vida e a vastidão da Natureza que nos abraça e sustém, não basta cantar afinadinho. Faltou metafísica àquela ópera, mas sobrou-lhe encanto no cenário, não se perdeu tudo.

Na véspera de Natal saí com o Fox pela manhã, e quando regressei tinha a casa cheia de gente feliz: daí a nada vinha visitar-nos um jogador da selecção nacional de futebol (nem queiram saber como é que estas coisas nos acontecem, mas acho que é assim: em Berlim há tantos VIPs, que algum havia de sobrar para nós) e o Joachim chamou um amigo para trazer os filhos e a tralha toda para ele assinar. Parecia outra vez um filme: os miúdos com um sorriso de orelha a orelha, o jogador muito simpático e simples a responder às nossas perguntas, a contar dos natais da sua infância, a dizer que mais valia dar-lhes a camisola do próximo jogo, em vez de assinar aquela - e os olhos dos nossos amigos a escancarar-se de alegria.
(Eu a pensar que estava capaz de trocar as pernas do Figo pelo olhos daquele rapaz - que olhos extraordinariamente doces!) (la donna è mobile, eu sei)
Depois de ele se ir embora, os miúdos comentaram a sua roupa, fascinados. Comparado com este, o famoso Arrumadinho parece o rapariguinho do shopping. Não há dúvida: há em Portugal fenómenos de sucesso que não consigo entender.  

O cozinheiro sueco foi para a cozinha preparar os gansos da consoada, eu fui comprar os últimos presentes (as lojas fechavam às duas da tarde), consegui encontrar tudo, ufff!, a mulher do cozinheiro foi preparar a apple pie e a blueberry pie. Em algum momento trocou o açúcar pelo sal (não percebo como é que é possível olhar para um boião que diz "Marmelade" e não ver logo que isso é o sal!) de modo que as pies saíram um bocadinho sui generis. Mas foi só na crosta, pelo que sugámos a maior parte do sal com papel húmido, e o que sobrou deu um ar de interessante experiência culinária.
Pusemos os dois artistas de circo convidados (o filho do cozinheiro e a sua namorada australiana) a montar a árvore e o presépio, mas eles penduraram as bolas de vidro e prenderam os passarinhos como gente normal - sem um flic flac entre duas estrelas nem nada. Só soltavam volta e meia uns aaaahs extasiados, como se o verdadeiro prodígio fosse aquele abeto a cheirar a floresta nórdica e a sua decoração tradicional e simples. E, convenhamos, era.


A Christina veio ter connosco pelo skype, ficámos na risota com ela um bom bocado, depois o Joachim andou a mostrar-lhe a casa: o pinheiro, o presépio, a mesa, os gansos no forno (mas esta parte não foi uma grande maldade, porque o skype não passa os aromas). O Matthias fechou-se numa sala a conversar com a irmã sem ninguém os incomodar. Gosto imenso quando se põem a falar um com o outro, longe de nós. Fico feliz, e aliviada, ao vê-los assim amigos e confidentes.

Ficou tudo pronto cinco minutos antes de o ganso vir para a mesa. Entre o rir, tirar fotografias, cortar, e tudo, a comida arrefeceu. Em termos culinários, foi sem dúvida um Natal diferente...




Fizemos um intervalinho antes das pies para cantar algumas canções de Natal. A minha sogra ao piano, o Joachim o Matthias e eu a cantar as canções tradicionais de Natal alemãs, algumas antigas de cinco séculos. Tão belas.




A australiana leu uma passagem da Bíblia em francês, o que por momentos me levou aos nossos encontros nos Alpes franceses e em Taizé, e trouxe para aquela sala recordações de amigos queridos. Depois cantámos o inevitável "Noite feliz", o Joachim e o Matthias a fazer a gracinha habitual "noite feliz aaaaaaah-inspira-fundo, noite de paz aaaaaah-inspira-fundo" (eles dizem que esta é a canção ideal para os asmáticos), a avó tocava e ria. E assim se conseguiu resolver uma questão delicada: celebrarmos nós o nosso Natal de cristãos sem que a nossa amiga judia se sentisse agredida.
Depois disso, lembro-me vagamente dos presentes, das pies, e de o vinho estar muito bom...

No primeiro dia de Natal sornámos longamente, e depois de escurecer fomos até ao mercado do Gendarmenmarkt: um bocadinho de magia no coração da cidade.


No segundo dia de Natal queríamos ir a um concerto de música barroca no cenário do Jagdschloss Grunewald, mas estava esgotado. Pelo que assistimos a uma parte do ensaio, rapidamente percebemos que fora uma sorte para nós o concerto estar esgotado, visitamos a colecção dos Cranach, fotografámos com o telemóvel o lago gelado...


... e a seguir fomos sonhar para o Corteo. Difícil dizer o que foi o mais bonito - mas a cena dos balões, a partir de 49'05, é pura poesia.



Nestas duas semanas houve ainda tempo para ir passear para o Wannsee (ah, a luz de inverno no Wannsee!)...




...ao museu Die Brücke, que estava deserto e tem de novo os quadros da exposição habitual (e como é bom regressar aos quadros onde já se foi feliz!)...


...à Filarmonia, onde nos zangámos um bocadinho com a Bartoli (porque não nos deixou assistir ao seu ensaio), e ao Loft - um espectáculo de "variété", que é como quem diz teatro circo com alguns toques de ordinarice. Chegámos mesmo em cima da hora, mandaram-nos por uma entrada lateral, e quando demos por ela estávamos a entrar pelo meio do frigorífico do Loft para o centro do palco, com a sala cheia a aplaudir. Eu achei que todos tinham passado pelo mesmo, de modo que me ri para as outras vítimas; a nossa amiga Linda descobriu entre os artistas no palco uma que tinha sido roommate da nossa australiana, deu-lhe dois beijinhos e fez um bocadinho de small talk enquanto o público continuava a aplaudir. Um dos artistas tinha um six pack que quase me fez esquecer os olhos do jogador de futebol (o Verdi é que tinha razão).



Nestas duas semanas também houve tempo para ver sossegadamente filmes no sofá, ler, dormir, passear (muito) com o Fox. Para fazer sushi em casa,


e ir festejar a passagem de ano à maneira russa: a mesa ajoujada de comida fantástica porque duas avós tinham cozinhado ao despique, a enorme simpatia das pessoas, o fogo-de-artifício especial - e nós, sortudos, a saborear com eles.


O nosso Natal dava vários filmes de domingo à tarde. Uns poéticos, outros cómicos. Mas ainda está para nascer duas vezes o autor capaz de imaginar a tirada mais inesperada de todas: num jantar com primos, a minha sogra atira para a mesa que "a Helena diz que a culpa de tudo o que está a acontecer em Portugal é da Angela Merkel!"
(Aha, Rita, para que conste!)

***

Ontem, a última das nossas visitas foi-se embora: o nosso Natal acabou a 2 de Janeiro - mas já temos planos para o próximo.

9 comentários:

Anónimo disse...

E a Merkel não tem a culpa de tudo ? ;)

Que post maravilhoso, que me fez rir e comoveu. A inserir na categoria LIfe is so fair.

PS- A pernas do Figo já eram...

Helena Araújo disse...

Pois é: a minha sogra acha que eu acho que sim! :)

Obrigada, Helena.

Quanto às pernas do Figo: tenho dias em que acredito que não há amor como o primeiro... ;-)

Paulo disse...

:-)
(À falta de mais palavras)

Paulo disse...

(Obrigado por teres chamado a atenção para a cena dos balões. Para quem está com falta de vagar.)

Helena Araújo disse...

Paulo,
:)
Viste os balões? Também ficaste com um sorriso pespegado na cara?
(Eu passei aquele circo de boca aberta. Uma sorte estarmos no Inverno: não há moscas!)

Unknown disse...

Olá Helena,
Depois do que eu disse sobre ir a/ para Berlim, se escrever o que estou a pensar, vai achar que sou uma grande invejosa, mas pronto, arrisco: que belo Natal, quem me dera um assim! A sério, ainda bem que passou uns momentos tão divertidos.
Quanto à visita VIP, no entanto, e não desfazendo no mocinho jogador da selecção, se/quando eu for aí, gostava era de conhecer o Sebastian Koch. Arranja-se?:))

Relativamente à Angela Merkel, talvez pudesse explicar à sua sogra que as exigências desta senhora ajudar, não ajudam, mas que isto em Portugal é doença crónica. Para exemplificar, basta dizer-lhe quem é o Eça e traduzir uns bocadinhos daqueles textos dele que parecem mesmo escritos hoje.

Helena Araújo disse...

Maria B,
:)

Quanto ao Sebastian Koch: se se arranjasse, não se arranjava, que eu ficava com ele inteirinho para mim! ;-)

Quanto à Angela Merkel: pois...

calita disse...

De facto não percebo porque raio não te deixam mandar. Não haverá mesmo uma forma de se arranjar isso?

Helena Araújo disse...

hahahaha