04 junho 2012

eu-tu-nós



Este vídeo, que encontrei no mural de facebook da Ana Cristina Leonardo, lembra-me uma passagem da biografia de Marcel Reich-Ranicki, que há tempos traduzi aqui:

Lembro-me de duas perguntas que fiz a Menuhin durante essa viagem de comboio [em 1960]. Queria saber quem, em sua opinião, era o maior violinista vivo. A resposta veio imediatamente: David Ojstrach – e acrescentou: “há nele um violinista cigano”, com o que se referia, obviamente, ao temperamento de Ojstrach, à alegria com que tocava e à sua originalidade. Para que eu não o entendesse mal, disse Menuhin a rir, em cada grande violinista há um pequeno cigano.


O III Reich expulsava das orquestras os músicos judeus, porque eles "degeneravam" a música. Pelo mesmo motivo, no gueto de Varsóvia, as orquestras improvisadas estavam proibidas de tocar música de arianos - só lhes permitiam interpretar os compositores judeus, eslavos e "sub-humanos" do género.
Quando o muro caiu, as orquestras da RDA foram em tournée pelo mundo, e tiveram imenso sucesso porque todos queriam ouvir como se tocava a música clássica no bloco que tinha ficado a salvo das modernices ocidentais. A música clássica tocada à moda antiga, portanto.
Há anos falava-se muito das qualidades dos músicos asiáticos: excelentes executantes, mas intérpretes que não entendiam a alma da peça (dizia-se, e eu cito mas não sei se corroboro ou não, porque nestas coisas sou um bocadinho daltónica dos ouvidos). Agora, quase não há orquestra sem asiáticos - e cada vez são mais elogiados. Será que eles entretanto conseguiram tocar a alma ocidental, ou foram os ouvidos ocidentais que se habituaram a novas maneiras de interpretar?
As experiências de diálogos interculturais abundam, e o público gosta. Por estes dias, Berlim está cheia de cartazes que anunciam um concerto de música clássica para crianças, e estão escritos em alemão e turco.



São meras ideias soltas, suscitadas por aquele vídeo. Gosto de viver num mundo onde já não se diz "fujam, que vêm aí os judeus/ciganos/turcos/asiáticos e vão estragar-nos a nossa rica cultura!"
E gosto especialmente de ver que em Berlim se convida a população de origem turca a entrar na Filarmonia, em vez de a arrumar no gueto mental da segregação e da desistência.

10 comentários:

Paulo disse...

É muito possível que os ouvidos ocidentais se tenham habituado a interpretações mais técnicas e por vezes mais espectaculares. Exemplos de músicos e cantores que têm extraordinárias campanhas de marketing a alavancarem-lhes a carreira abundam.

(Adorei poder utilizar aqui um verbo que abomino.)

Tenho muita pena de ter perdido o link para uma entrevista que Sequeira Costa deu há uns tempos à Antena2, em que ele falava precisamente disso, referindo-se a pianistas com um sucesso fulgurante mas sem mencionar nomes. Não precisava.

Eu confesso que devo ser muito retrógrado, mas cada vez gosto mais das interpretações que já não se usam.

Helena Araújo disse...

O verbo abundar? ;-)

Eu assim de repente só me lembro do pianista chinês - ai como era mesmo o nome dele? -, aquele muito amaneirado. Faz demasiado teatro para o meu gosto.

Paulo disse...

(Do verbo "abundar" eu gosto.)

Pianista chinês? Há?

Helena Araújo disse...

"abundar", hehehe
Eu por acaso gosto do verbo "alavancar". Acho-o dinâmico.

Continuo à procura do nome do pianista chinês. Não é Miau-Miau, não é Flan-Flan, não é Miu-Miu...

Helena Araújo disse...

E é que não me lembro mesmo! Sei que é um nome repetido, mas também não é El El Gato Gato.

Helena Araújo disse...

Nada como ter um filho ao lado a quem perguntar as coisas importantes da vida.
Lang-Lang.

Acho que tem mais trejeitos que jeito.

Paulo disse...

ahahahahahah.

Ninguém lhe desalavancará a carreira tão depressa.

Flan-Flan era bom, mas El El Gato Gato era melhor.

Helena Araújo disse...

:-)

Paulo disse...

Ainda uma cousa: os instrumentistas orientais são normalmente muito bons tecnicamente, muito precisos; logo, funcionam à partida muito bem em orquestra.

Helena Araújo disse...

Isso de facto pode bem explicar o seu número crescente nas orquestras que vejo por aqui.

Sabes que no internato de música em Weimar há um grande número de miúdos novinhos que são enviados da Ásia para desde bem cedo aprenderem a música clássica ocidental? Que esforço impressionante!