29 maio 2012

Roma! (5)

Comprámos na internet os bilhetes para os museus do Vaticano, o que nos permitiu poupar mais de uma hora de fila ao longo da rua. Daqui a uns anos, quando toda a gente comprar os bilhetes online, talvez o melhor seja ir sem se fazer anunciar, e passar ao lado da fila de duas horas para as pessoas que têm o bilhete comprado...

Entrámos logo às nove, e fomos directos à Capela Sistina. Vimo-nos envolvidos numa massa insuportável de grupos que paravam em magote no meio da sala, impedindo os outros de passar, mas mesmo assim valeu a pena, porque deixámos para a tarde a parte do museu por onde quase todos costumam passar primeiro, e a essa hora já os grupos estavam noutra, felizmente. Até pudemos ver o famoso torso de Belvedere, todo inteiro e não apenas os ombros e o que resta do pescoço, até pudemos andar à volta dele, em vez de sermos levados em levitação, entalados no meio da massa humana que de manhã o circunda em passos minúsculos incessantes. 





Apesar das multidões, a caminhada até à Capela Sistina é uma delícia. Gosto especialmente da galeria dos mapas: o mundo visto a partir de Roma (é a única explicação que encontro para as regiões a norte de Roma estarem representadas como nos habituámos a ver, com o norte no topo da imagem, e as regiões a sul estarem de pernas para o ar, como se vê na imagem da Sicília que mostro a seguir) (e agora me dei conta que me esqueci de ver se a Turquia estava deitada sobre o seu lado nascente, a península ibérica sobre o poente) (como se me faltassem motivos para voltar as esses museus, acabei de arranjar mais um).


 E as cidades? Por exemplo: Génova e Veneza à maneira de Merian:



 E os tectos?





Isto sim, eram grandes tempos, quando ninguém criticava o despesismo da cultura (excepto, talvez, os franciscanos).
Quer-se dizer, pensando bem, não sei se os tempos seriam assim tão grandes - eram mais do género "vão-se os dedos, ficam os anéis".

Com o jeito que tenho para estar no sítio certo no momento certo, arranjei de estar nos museus do Vaticano com uma das pessoas mais cultas que conheço, um caso extraordinário de american dream. O nosso amigo Robert começou por ter notas tão excepcionais no fim do secundário que pôde escolher a universidade que lhe apeteceu, e escolheu uma das mais famosas da East Coast, a que mais lhe pagava para ser a escolhida. No fim do curso decidiu ir passear dois anos na Europa em vez de fazer um doutoramento e todos os etc. que dele se esperavam. Chegou a Roma pouco depois das filmagens do La Dolce Vita, e ficou por largos meses (durante esta estadia, não se cansava de notar as diferenças: o excesso de turistas, as ruas muito mais limpas e sem o terrível mau cheiro de há quase cinquenta anos, o não haver homens a urinar a cada esquina). Após os dois anos de férias regressou aos EUA, mais concretamente a Haight-Ashbury, e em algum momento arranjou um emprego como professor que lhe garantisse um salário certo e lhe permitisse ter tempo para aquilo de que realmente gosta: a música renascentista e barroca. No entretanto, misturou-se com a história do seu país, participou muito activamente em manifestações e acções de boicote à guerra do Vietname (muitos anos depois, dir-nos-ia que as nossas manifestações contra a guerra do Iraque eram coisa de diletantes - ele viu um comboio de armamento passar por cima das pernas de um amigo seu, preso aos carris para lhe impedir a passagem).  
Nessa manhã, ao pequeno-almoço, a propósito do CD "Los pájaros perdidos" que lhe tínhamos levado, o Robert contara dos tempos em que conseguiu convencer o seu grupo de música a ousar o humor na música antiga. Divertiam-se imenso a inventar maneiras loucas de interpretar essa música, faziam concursos de improvisação em palco para ver quem se saía com a interpretação mais original, fartavam-se de rir com as palhaçadas que faziam. Um dos músicos desse grupo, Doron Sherwin, foi para a Europa, e começou a fazer com l'Arpegiatta aquilo que anos atrás iniciara com o Robert. "Mas fazem-no muito melhor", rematou o Robert, modestamente. Algo como isto:



Uns metros antes das salas de Rafael, o Robert estacou. Estávamos na sala da Imaculada Conceição, um sítio por onde se passa rapidamente com cara de "olha mais uma sala gira". Talvez também a tivéssemos atravessado rapidamente se não estivéssemos com o Robert, que quis parar naquela fase da História da Igreja. Os frescos na parede são do século XIX, para celebrar o dogma ainda recente da Imaculada Conceição (sim, tem apenas século e meio)



e os mosaicos no chão, os mosaicos que tanto me impressionaram, são romanos e vieram de Óstia. Por eles passam todos os dias milhares e milhares de pessoas, de nariz no ar, farejando já as salas de Rafael que começam logo a seguir.



As salas de Rafael, pois. Fizeram uma passagem exterior para permitir que a enorme vaga de turistas as atravesse, em vez de entrar e sair pela mesma porta, pelo que a actual primeira é a antiga última, a que foi terminada depois da morte de Rafael.
Uma pessoa fica sem saber se deve olhar para as paredes, ou para o tecto (nessa primeira sala era "o triunfo do Cristianismo" - porque antes de inventarem o politicamente correcto estas coisas diziam-se com todas as cores),



ou para as japonesas de quimono ou para as indianas de sari ou para os mosaicos romanos no chão.

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Na segunda sala, gostei especialmente de ver os anjos a atirar Heliodoro para o chão, para ele aprender a não roubar o ouro. Lembrei-me dos nossos tempos, não sei porquê, rorate coeli e apareça um cavaleiro num cavalo branco, um milagrezinho dava-nos jeito...


O papa Júlio II (seria o pai do Júlio III que mandou fazer a Villa Giulia?...) assistia à cena carregado por Rafael (do lado esquerdo do papa) e o seu amigo Marcantonio Raimondo. Os dois com cara de Cristo desmotivado, o melhor é passar rapidamente para outro assunto antes de chegar a mais uma metáfora sobre a Igreja, a Hierarquia e os desgraçados que a carregam.



Sobre uma das janelas, uma cena da libertação de São Pedro, com um extraordinário trabalho de luz:

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Na sala seguinte, parei longamente na delicadeza do traço de Rafael e nos seus profundos conhecimentos de anatomia, digamos assim (mais um papa pitosga, é o que é - os oftalmologistas daquele tempo não deviam ser grandes especialistas).

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Numa das passagens entre as salas, um pormenor muito curioso: destruíram um bocadinho da parede para melhor a proteger dos turistas.

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Este post já vai longo, e ainda nem cheguei a meio do museu. Abreviando: não fiz fotografias da Escola de Atenas, nem era preciso porque já toda a gente conhece. Por sorte metade das paredes estava em restauração, pelo que não pude fazer fotografias e assim passo à sala seguinte, onde o Robert nos mostrou Homero, o ceguinho da parte superior da pintura, e um ou outro poeta "que inspirou muitas das óperas". Adiante.


Na sala do incêndio havia uma cena incrível de um papa a apagar um incêndio com um simples sinal da cruz, desta é que os bombeiros voluntários de todo o mundo não se lembraram, e muito menos o governo português quando chega a época dos incêndios florestais (mas, bem vistas as coisas, talvez o actual governo se venha a lembrar disso, sim - rezar fica bem mais barato que manter carros e bombeiros, e toda a gente o pode fazer também aos domingos e aos feriados que restam).
Também tinha pormenores anatómicos, que o Rafael nem perante a maior das tragédias se esquecia de louvar as maravilhas da Criação. O que ele não daria para viver hoje e frequentar um ginásio de halterofilia? Estou mesmo a imaginá-lo, como Degas mas para homens. Bem, para mulheres também: consta que era uma pessoa capaz de estabelecer uma íntima relação artística com tudo o que lhe aparecesse pela frente. Muito amor para dar.

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Antes de entrar na Capela Sistina resolvemos fazer uma pequena pausa num sítio sossegado, o apartamento Borgia. Estava decorado com frescos de Pinturicchio, mas provavelmente isso não consta de nenhum guia turístico daqueles tipo "Roma em dois dias e meio". As salas estavam agradavelmente vazias.

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Passámos ainda pela colecção de arte moderna, gostei especialmente da sala Matisse:

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E chegámos enfim à Capela CHIU!stina.
Os guardas são insuportáveis. Os turistas também. Uma barulheira ensurdecedora, e por cima disso aqueles CHIU! cortantes e desagradáveis.
Se me deixassem mandar... mas nunca deixam, snif snif, e muito menos deixariam uma mulher mandar na Capela Sistina, coração do Vaticano. Insisto, contudo: se me deixassem mandar, trocava aqueles guardas CHIU! por música antiga, tocada num tom suave para as pessoas serem obrigadas a baixar o tom de voz. E dava aos guardas ordens para, em vez de gritarem para o meio da capela aquele CHIU! degradante, irem falar com as pessoas delicadamente, pedir-lhes que comuniquem apenas em sussurros por respeito aos outros. Não me parece demais que no coração do Vaticano as pessoas sejam tratadas como filhos de Deus, e se confie que também elas são capazes de tratar os outros com respeito.

Os frescos lá continuam, lindos como sempre, alguns moderníssimos como sempre. Especialmente as composições nas molduras triangulares sobre as janelas: bem podiam ser quadros do séc. XX.

Ficámos na capela cerca de trinta chius. À saída, deparámos com um grego que fazia uma cara igual à nossa:

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Percorremos as salas da Biblioteca, todas lindas,

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e fomos almoçar num terraço de um jardim que já terá sido privado dos papas.
A cerveja deu-nos força para ir ainda à Pinacoteca, onde vi uma mulher a empurrar a cadeira de rodas de outra e a ver com ela as peças, uma a uma,
 (há tantas maneiras bonitas de dizer amor)

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Passámos pelo museu egípcio, para eu lhes mostrar a minha múmia parcialmente desembrulhada, e fomos para o museu Pio Clementino, a essa hora já muito desafogado.

Junto ao sarcófago da imperatriz Helena, mãe de Constantino,
(e como terão feito para conseguir levar aquele enorme bloco de Tor Pignattara para São João Latrão no séc. XII? às vezes desconfio que tem havido extraterrestres misturados por aí, ou então o super-homem, pelo menos)

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havia um mosaico romano com os cantos feitos pelo Matisse:

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Chamam a esta galeria "museu Chiaramonti", a mim parece-me mais um armazém, com os seus bustos antigos muito bem arrumados em prateleiras, as estátuas alinhadas lado a lado:

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(Já vi armazéns mais feios.)

Saímos pela espiral moderna, semi-moderna. São escadas práticas para aquela multidão, mas ainda não tenho a certeza de gostar da solução decorativa que lhe arranjaram.

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Era a minha terceira vez nestes museus. O Robert dizia que foi a sua última, e nem por isso parecia muito sequioso de ver tudo. A Linda, que tem uns quinze anos menos que ele, olhava para nós, um pouco perdida. Adivinhava-lhe a tristeza: e eu, voltarei cá? e com quem? e como?

Tínhamos marcado um concerto de "tesouros da arte e da música", na igreja de Santa Inês na Piazza Navona. Uma ideia bem arrancada: um grupo de músicos e cantores e uma guia dão concertos em cenários especiais da cidade (igrejas, palácios). Os músicos falam sobre a música, a guia fala sobre o espaço, cobram um preço absurdo (25 euros por uma gracinha de um hora) e assim se apanham papalvos como nós. 
A guia era irritante, falava com aqueles tiques alegres italianos, mesmo quando contava a tragédia da vida da Santa Inês ("foi horrível", dizia ela com um sorriso, como se estivesse a dizer "olha que lindo dia da sol"), mal soava a última nota levantava-se para aplaudir fazendo um sorriso encorajador na nossa direcção, para percebermos que era o momento de put your hands together. Os músicos eram bastante bons. No fim, o Robert foi falar com a contralto, Micaela Parrilla, elogiou-lhe a fantástica voz de tenor e deu-lhe o endereço de um grupo francês que bem podia precisar dela. Afinal não sou só eu que tenho jeito para estar no sítio certo no momento certo, à Micaela Parrilla também aconteceu. Mas o Robert estava apreensivo: "não me parece que ela se tenha dado realmente conta do prodígio de voz que tem". 

Depois fomos jantar ao Pierluigi, perto da nossa casa. Relativamente caro, e bom.
No fim do jantar fomos comer bolo e beber grappa para o nosso terraço sobre Roma. 

Antes do grappa:
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Depois:
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3 comentários:

jj.amarante disse...

Quando for grande hei de fazer posts compridos (e interessantes) como este.

Helena Araújo disse...

:)
Porque quer trocar? Já consegue fazer posts curtos e mais interessantes que este!
Pergunto-me quantas pessoas vão ler isto...

Paulo disse...

Homessa! Então não lêem? A menos que não gostem de frescos de Rafael. Eu, quem mos tira...