21 maio 2012

o expresso do paraíso (1)


Fui com um amigo, o Paulo Almeida, buscar o casal Kaminer ao aeroporto. O escritor não perdeu tempo: ao fim de um minuto já estava em grande conversa com o Paulo, dizendo o que pensava do "Memorial do Convento" do Saramago (mas não será por mim que o saberão).
No caminho para alugar o carro, falamos sobre a situação em Portugal e o sofrimento das vítimas da austeridade e da espiral recessiva, do ressentimento em relação à Alemanha. Nada que ele não soubesse já.
Seguimos para a Tinta-da-China, onde o Lutz e a televisão nos esperavam.

Logo à primeira pergunta da entrevista percebi a sorte que é trabalhar com o Lutz. Além de ser um tradutor-intérprete muito competente, não complica. Nem sempre é fácil duas pessoas trabalharem assim, corrigindo-se mutuamente em público. Com o Lutz, isso não é problema - o objectivo é oferecer a melhor tradução possível, apenas isso.
Mais tarde, ao ouvir o áudio para fazer as legendas, reparei que me ri muitas vezes quando o Kaminer estava a chegar ao fim das frases. Imagino o trabalhão dos técnicos da rtp a tirar as minhas gargalhadas da banda sonora! Bem sei que é indesculpável, mas peço o impossível: desculpem-me! Prometo que nunca mais volto a fazer este erro. E em minha defesa tenho a dizer que os outros também se riam quando ouviam a tradução.

No fim da entrevista, veio o choque: o Kaminer deu-se conta que estávamos a contar com uma russendisko em Lisboa. Ele pensava que tínhamos combinado que não, eu pensava que tinha combinado com ele que em Montemor não se faria, mas em Lisboa sim. A Olga salvou-nos. Disse-lhe não sei quê em russo, a cara dele abriu-se, e eu senti-me como os criados naquela cena das bodas de Canaã, quando Maria lhes disse que não se preocupassem com a falta do vinho, que para tudo há uma solução.

Antes de entrar no carro, ele perguntou se podia guiar o carro, pondo olhos de miúdo em véspera de Natal.
Gulp. Só tirou a carta de condução há um ano, e já quer conduzir nas ruas de Lisboa?! Comecei a ver a notícia nos jornais "grande perda para a literatura mundial: tradutora morre em acidente de viação". Tentei um compromisso: eu tiro o carro de Lisboa, ele leva-o na auto-estrada.
Ao longo das ruas e ruelas da cidade, voltámos a um dos temas da entrevista da televisão. "Estas ruas", dizia ele, "estas casas em ruínas no meio de prédios de luxo. Como é que o jornalista se lembra de me vir falar do surrealismo das histórias que conto? As pessoas só conseguem ver o surrealismo na vida dos outros, mas não no seu próprio quotidiano, no seu país."
A estrada estava vazia. Ao volante, o Kaminer parecia um cowboy gozando o prazer de estar sozinho na imensidão da pradaria. E recomeçava: "Esta auto-estrada deserta - que é isto, senão puro surrealismo?" 

Íamos a caminho do Alentejo, para jantar em casa de amigas queridas. Amigas queridíssimas, melhor dizendo: em cima do aparador estava a minha tarte preferida - quase me dava uma coisa boa no coração, ir de Berlim ao Alentejo e encontrar aquela tarte a rir-se para mim em cima de um aparador. Já propus casamento à mãe, as filhas pensam que é o golpe do baú, mas não é nada disso, é puro deleite sensual: o que eu já tenho sonhado com as noites loucas que passaremos a fazer massa areada, ai aquela massa areada da tarte de limão! Isso, e o amor à arte. Amor a um certo quadro do Manuel Amado que ela lá tem, e àquela luz excessiva que torna as sombras sólidas e os objectos imateriais.

Antes do jantar demos uma volta pela quinta. As flores em profusão, os cães felizes aos saltos em liberdade, o aroma fresco dos limões e das tangerinas que os ensinei a apanhar (torcer-lhes o pé para não furar a casca) (quem me ouve, até deve pensar que sou uma especialista). 
O Kaminer perguntou se já tinha chegado ao paraíso.
Já, respondi-lhe. Começa aqui.
E não minto.


Vou omitir a descrição da tábua de queijos portugueses, da sopa aveludada, do cozido, das sobremesas. Não, que ainda se lembram também de ir pedir a cozinheira em casamento, e lá se me vai o arranjinho da massa areada.

A Olga Kaminer adorou um dos quadros na parede. A nossa anfitriã segredou-me que tentaria arranjar uma reprodução para ela, para lhe dar no dia seguinte na Fonte de Letras em Montemor-o-Novo. O que fez, e foi bonito ver a Olga muda e comovida, em lágrimas de puro esperanto.

Depois do jantar seguimos para a Pousada de Estremoz. Uma chuva torrencial, chegámos tardíssimo. A porta já estava fechada, o que me deixou um pouco preocupada, mas abriu-se quando tirávamos as malas do carro, deixando ver a cabeça do porteiro: tinha passado o serão à escuta, à nossa espera. Há lá melhor maneira de mostrar aos viajantes que são bem-vindos?




Nos quartos havia doces regionais e vinho. Atestados de boa comida e bons vinhos até à ponta dos cabelos, como vínhamos, não lhes tocámos. Ainda lavei as minhas botas urbanas, todas enlameadas do laranjal, e tratei de ir dormir, extenuada.

Foi o primeiro dia.

3 comentários:

Carla R. disse...

Essa frase do surrealismo apenas no quotidiano dos outros é tão, mas tão verdade. Mesmo na arquitectura. Passamos a vida a viajar, e a constatar, sem olharmos realmente para o que nos rodeia no dia a dia. Só depois de ter passado vários meses longe de Lisboa é que me apercebi de quão degradada é, e como a baixa é tão vazia à noite. Também as fotos que os meus amigos franceses fazem dela me espantam. Na maior parte das vezes pela negativa, "mas é assim tão mau ?"
Hoje, por exemplo, tive a sensação ao contrário, a passear por blogues franceses dei com esta maravilhosa e tão estranha Lisboa : http://ledansla.blogspot.fr/

(os Kaminer têm cá uma sorte !)

Paulo disse...

Não será por ti que o saberão, e por mim também não.

Aluguer de carros Portugal disse...

É verdade! Lisboa está muito degradada. Em muitos outros países vemos casas antigas mas que estão cuidadas e não degradadas mas aqui temos que começar a cuidar antes que seja tarde.