08 abril 2012

ressurreição (2)

Anunciavam mau tempo para hoje, mas o sol não lê jornais. Acordou-me cedo, iluminou o quarto e o livro que li vagarosamente: "como se desenha uma casa", de Manuel António Pina.

Uma casa é as ruínas de uma casa,
uma coisa ameaçadora à espera de uma palavra;
desenha-a como quem embala um remorso,
com algum grau de abstracção e sem um plano rigoroso.

A missa do meio-dia na minha paróquia era com orquestra e coro: missa solemnis de Schubert. Fui uma hora antes, para arranjar um bom lugar, e levei Rilke comigo. Abri o livro ao acaso, justamente nos poemas para frontispícios de casas:

- 1914 -
Neste ano, de destruições tão duro,
Me ergo pura, e me entrego ao futuro.


Em mil novecentos e catorze / me fizeram /
devindo ainda, em frente olhei / confiei sempre:
quem confia, permanece.


 
(Uma casa é as ruínas de uma casa - do meio de ruínas nasce a casa - "quem confia, permanece")

 
Passei ao Livro de Horas, parei num dos primeiros poemas: 

A minha vida a vivo em anéis crescentes
que sobre as coisas se estendem.
Mesmo que não feche o último,
não importa: tento.

Voo em volta de Deus, a torre antiga,
um voo de mil anos, circulando;
e ainda não sei: se sou falcão, 
tempestade, ou canto.
 
A missa começou. Poucas palavras, bela música. Mas logo no Gloria comecei a ficar irritada com duas miúdas que de pé, junto a uma coluna, palravam animadamente. Os adultos perto dela pareciam surdos: ninguém as mandava calar. "Estas crianças não têm mãe?", pensei eu, cada vez mais alemã. Tinham mãe, tinham, e estava a cantar no coro. Tive uma inspiração de pacifismo: arranjei lugares para as sentar separadas. Fiz-lhes sinal para se virem sentar, mas elas devem ter percebido a intenção, nem se mexeram. Os adultos também perceberam, e sorriram-me. Pelo menos compreendem-me, pensei, e já me custou menos aturar aquela barulheira por cima do Schubert.

"O Homem da Páscoa", dizia o padre na homilia, "tem a Páscoa nas pernas: levanta-se após cada queda, sabe que a vida não é um sofá. E tem a Páscoa nos olhos: olha para o passado e reconhece quando voltou à vida e avançou. Tem a Páscoa nas mãos: mãos de agir, de criar e dar vida. Tem a Páscoa nos ouvidos: o caminho para Deus é um caminho de escuta. Tem a Páscoa no coração: confia que não vive em vão, porque a Páscoa vive nele."
As miúdas foram-se embora. O Schubert continuou. Eu pensava na ressurreição que nos atravessa a vida: em vez de certeza, uma busca atenta e tranquila.

Depois do almoço fomos com um amigo ver o terreno onde vamos construir uma casa: aqui me ergo pura, e me entrego ao futuro.
Regressámos por um caminho junto ao lago: hoje estava especialmente belo, oferecia-se todo como uma promessa.

2 comentários:

Lucy disse...

é feio ter inveja, não é? mas fico contente por haver missas assim...

Helena Araújo disse...

O que eu gostava, Lucy, é que os meus amigos pudessem ter também missas assim!