15 abril 2012

João Quadros, sobre o peixe nosso de cada dia

(publicado aqui)

"Os dados mais recentes do Instituto Nacional de Estatística (INE) demonstram que o Pingo Doce (da Jerónimo Martins) e o Modelo Continente (do grupo Sonae) estão entre os maiores importadores portugueses."

Porque é que estes dados não me causam admiração? Talvez porque, esta semana, tive a oportunidade de verificar que a zona de frescos dos supermercados parece uns jogos sem fronteiras de pescado e marisco. Uma ONU do ultra-congelado. Eu explico.

Por alto, vi: camarão do Equador, burrié da Irlanda, perca egípcia, sapateira de Madagáscar, polvo marroquino, berbigão das Fidji, abrótea do Haiti… Uma pessoa chega a sentir vergonha por haver marisco mais viajado que nós. Eu não tenho vontade de comer uma abrótea que veio do Haiti ou um berbigão que veio das exóticas Fidji. Para mim, tudo o que fica a mais de 2.000 quilómetros de casa é exótico. Eu sou curioso, tenho vontade de falar com o berbigão, tenho curiosidade de saber como é que é o país dele, se a água é quente, se tem irmãs, etc.

Vamos lá ver. Uma pessoa vai ao supermercado comprar duas cabeças de pescada, não tem de sentir que não conhece o mundo. Não é saudável ter inveja de uma gamba. Uma dona de casa vai fazer compras e fica a chorar junto do linguado de Cuba, porque se lembra que foi tão feliz na lua-de-mel em Havana e agora já nem a Badajoz vai. Não se faz. E é desagradável constatar que o tamboril (da Escócia) fez mais quilómetros para ali chegar que os que vamos fazer durante todo o ano. Há quem acabe por levar peixe-espada do Quénia só para ter alguém interessante e viajado lá em casa. Eu vi perca egípcia em Telheiras… fica estranho. Perca egípcia soa a Hercule Poirot e Morte no Nilo. A minha mãe olha para uma perca egípcia e esquece que está num supermercado e imagina-se no Museu do Cairo e esquece-se das compras. Fica ali a sonhar, no gelo, capaz de se constipar.

Deixei para o fim o polvo marroquino. É complicado pedir polvo marroquino, assim às claras. Eu não consigo perguntar: "tem polvo marroquino?", sem olhar à volta a ver se vem lá polícia. "Queria quinhentos de polvo marroquino" - tem de ser dito em voz mais baixa e rouca. Acabei por optar por robalo de Chernobyl para o almoço. Não há nada como umas coxinhas de robalo de Chernobyl.

Eu, às vezes penso: o que não poupávamos se Portugal tivesse mar. Boa Páscoa.

Nota: O autor escreveu esta crónica segundo os princípios da Sexta-feira Santa: só peixe, sem referências a carne. E algum vinho…

7 comentários:

Interessada disse...

É verdade Helena. O que poupávamos e o que melhorava a vida dos portugueses, não termos uma frota pesqueira aniquilada.

Helena Araújo disse...

Já agora, pergunto: quem pesca no nosso mar?

Mar* disse...

http://sicnoticias.sapo.pt/pais/article1479484.ece

Para tentar responder um pouco à tua pergunta. É que não é só na Ria de Aveiro.

Helena Araújo disse...

Mar*,
obrigada. Já tinha ouvido falar de um impressionante aumento de pedidos para autorizações de pesca.

snowgaze disse...

Tem graça, eu chego a um supermercado português, vejo esse peixe congelado importado do mundo inteiro a preços acessíveis, e o que eu invejo não é os km que os peixes fizeram, mas o facto de em Portugal se encontrar essa variedade toda no supermercado, e por cá, nem barato nem caro, a secção do peixe congelado é uma miséria, onde se encontra salmão e um ou dois peixes brancos, e pouco mais. Ameijoas vietnamitas, nem a 2,50 o quilo nem a 10 euros o quilo, nem a preço nenhum. Perca, o que é isso? Peixe de mar, o que é isso? Peixe "fresco" é uma brincadeira, a fronteira com a Itália e a França é bem perto mas o peixe que cá chega, quando chega, nem a um gato o dava de tão velho que está. Deve ser por isso que, a algum peixe, tiram as cabeças, para que não se veja nos olhos baços que já não devia estar numa vitrina de supermercado.

O que eu dava por um continente perto de casa.

Luís Novaes Tito disse...

Eu pesco (no nosso mar).
Ou antes, pescava antes desta maldita pescoceira me inviabilizar esse gozo.

:)

Helena Araújo disse...

Então ainda não está como novo, Luís?
Então andou metade da blogosfera a desejar rápidas melhoras, e nada?
Isso é que não pode ser. Veja lá se se põe outra vez bom, que é para nós sentirmos que servimos para alguma coisa. ;-)

Tente pescar piranhas, é muito fácil: deita-se a linha à água, fica-se por ali na conversa, elas não mordem, pronto. Sendo assim, a pescoceira não incomoda nada.

Faço votos para que melhore rapidamente, isso sim!