19 abril 2012

caminhante não há Kaminer... (5)



(do livro "Russendisko", de Wladimir Kaminer)



Russos em Berlim


No Verão de 1990 espalhou-se um rumor em Moscovo: que o Honecker estava a aceitar judeus da União Soviética, como uma espécie de reparação por a RDA nunca ter contribuído para os pagamentos para Israel. Segundo a propaganda oficial da Alemanha de Leste, os velhos nazis viviam todos na Alemanha Ocidental. A notícia foi trazida pelos muitos comerciantes que todas as semanas voavam entre Moscovo e Berlim Ocidental para fazer os seus negócios de importação e exportação, e correu célere. Em breve todos sabiam a novidade, excepto Honecker, talvez. Normalmente, na União Soviética a maior parte das pessoas tentavam omitir as suas origens judaicas, só quem tinha um passaporte limpo podia acalentar a esperança de vir a fazer carreira. E não era por anti-semitismo, mas devido ao simples facto de ser necessário pertencer ao Partido para ter acesso a qualquer posto mais ou menos importante. E o Partido não gostava muito de ter judeus. Todo o povo soviético marchava ao mesmo ritmo como os soldados na Praça Vermelha - de uma esforçada vitória para a seguinte, ninguém podia saltar fora. A não ser que fosse judeu. Nesse caso podia-se, pelo menos em teoria, emigrar para Israel. Se um judeu fizesse isso, não havia - quase - problema nenhum. Mas se um membro do Partido metesse os papéis para emigrar, aí os outros comunistas da sua unidade iam ficar em maus lençóis.
O meu pai, por exemplo, candidatou-se quatro vezes ao Partido, e falhou em todas. Durante dez anos foi subchefe do departamento de planeamento de uma pequena empresa, e sonhava um dia ver a ser chefe. Passaria então a ganhar 35 rublos mais. Mas o director só em pesadelos conseguiria imaginar um chefe do departamento de planeamento que não pertencesse ao Partido. Além disso, nem sequer era possível, porque o chefe tinha de ir prestar contas do seu trabalho todos os meses na reunião do Partido, no comité local. Como é que ele conseguiria sequer entrar - sem cartão de membro? O meu pai tentava, ano após ano, filiar-se no Partido. Bebeu litros de vodca com os activistas, suou com eles na sauna até não poder mais, mas tudo foi em vão. Todos os anos deparava com a mesma muralha intransponível: "Nós respeitamos-te muito, Viktor, serás sempre o nosso melhor amigo", diziam os activistas. "Gostaríamos muito de te aceitar no Partido. Mas tu bem sabes que, como judeu, a qualquer momento te podes pôr a andar para Israel." "Mas isso é algo que nunca farei", respondia o meu pai. "Claro que não te vais pôr a andar, isso sabemos nós, mas de um ponto de vista puramente teórico isso seria possível, não? Imagina com que cara nós íamos ficar." Devido a isso, o meu pai permaneceu sempre um candidato.
Os novos tempos chegaram: a carta-branca para correr mundo, o convite para um recomeço, consistia apenas em ser judeu. Os judeus, que antes pagavam à milícia para terem a palavra "judeu" retirada do seu passaporte, começaram a pagar precisamente para o contrário. De um dia para o outro, todas as empresas começaram a querer ter um director judeu, só ele estaria em condições de fazer negócios no mundo inteiro. Muitas pessoas, das mais diversas nacionalidades, decidiram repentinamente que queriam ser judias para poderem emigrar para a América, o Canadá ou a Áustria. A Alemanha de Leste juntou-se a este grupo um pouco mais tarde, e era uma espécie de segredo bem guardado.
O tio de um amigo meu, que negociava com fotocopiadoras de Berlim Ocidental, foi quem me falou disto. Uma vez fomos visitá-lo ao seu apartamento, que já estava quase vazio porque a família ia-se mudar em breve para Los Angeles. Só restava uma daquelas televisões enormes e caras, com leitor de vídeo integrado, que estava no chão no meio da sala. O tio estava deitado num colchão, a ver filmes pornográficos.
"O Honecker está a receber judeus em Berlim Leste. Para mim, já é demasiado tarde para mudar de direcção, já levei todos os meus milhões daqui para a América", disse-nos ele. "Mas vocês são novos, não têm nada, e a Alemanha é exactamente o que vos convém, aquilo está cheio de vadios. Têm um sistema de apoio social estável. Um par de rapazes mais não vão dar nas vistas."
Foi uma decisão espontânea. Além disso, a emigração para a Alemanha era muito mais fácil que para a América: o bilhete custava apenas 96 rublos, e não precisávamos de visto para Berlim Leste. No Verão de 1990, o meu amigo Mischa e eu chegámos à estação de caminho-de-ferro de Lichterfelde. A admissão correu de forma muito democrática. Com base na certidão de nascimento, onde estava escrito preto no branco que éramos filhos de judeus, recebemos uma declaração passada por um gabinete criado por Berlim Ocidental especialmente para o efeito, em Marienfelde, onde se lia que a Alemanha nos reconhecia como cidadãos de origem judaica. Levámos essa declaração à esquadra da polícia de Alexanderplatz onde, na qualidade de judeus autenticados, nos equiparam com um documento de identificação da RDA.  Em Marienfelde e na esquadra da polícia travámos conhecimento com muitos russos como nós. A vanguarda da quinta vaga de emigração.
A primeira vaga foi a Guarda Branca, durante a revolução e a guerra civil; a segunda vaga emigrou entre 1941 e 1945; a terceira era composta por dissidentes a partir dos anos sessenta; e a quarta vaga começou com os judeus que saíam por Viena, nos anos setenta. Os russos judeus da quinta vaga não se distinguiam do resto da população nem pela aparência nem pela religião. Podiam ser cristãos, ou muçulmanos ou mesmo ateus, loiros, ruivos ou escuros, de nariz arrebitado ou adunco. A única característica que os identificava era a palavra "judeu" no passaporte. Bastava que na família houvesse um judeu, um semi-judeu ou até um-quarto-judeu, e se fosse capaz de provar esse facto em Marienfelde.
(...)
Prepararam para nós um grande lar de estrangeiros em três prédios de plattenbau em Marzahn, que antes tinham servido como centro de repouso para a Stasi. Até novas ordens, era ali que podíamos repousar.


***
Isto parece as mil e uma noites: cada nova página dá vontade de saber o que se passará na seguinte. O Speedy Gonzalez estava capaz de continuar a traduzir, por ele fazia o livro todo. Mas eu tenho outras coisas que fazer, por isso paro aqui.

9 comentários:

Interessada disse...

Este sorriso já é mais convincente ;)

sem-se-ver disse...

olha o clooney em giro!



(esta, sim ;-)

Helena Araújo disse...

finalmente acerto na fotografia! Já não era sem tempo.

Ontem estive a falar com ele durante uma hora. Quer dizer: estive a olhar para ele durante uma hora, enquanto ele era entrevistado por outra pessoa. Quando voltar ao meu estado normal, conto. ;-)

Interessada disse...

Loool

Leonor disse...

Se vires o Speedy Gonzalez diz-lhe que ele está em grande forma :)

Anónimo disse...

De facto, o Speedy Gonzalez está em grande forma. Muito bem traduzido. Quase perfeito, o que depressa...


Pedro

Helena Araújo disse...

O Speedy Gonzalez acabou de abrir um sorriso que lhe passa para lá das orelhas!

Alberto disse...

Hola....he visto que nos has traducido "plattenbauten", que en realidad son unas contrucciones propias de la época y formadas por bloques de cemento. Saludos desde España!!

Helena Araújo disse...

Hola, Alberto,
pois é, não traduzi plattenbau.

Preferi deixar assim, a escrever:

Prepararam para nós um grande lar de estrangeiros em três prédios próprios da época feitos com grandes blocos de cimento, em Marzahn, que antes tinham servido como centro de repouso para a Stasi.