16 abril 2012

caminhante não há Kaminer... (4)

(do livro "Eu não sou um berlinense - um guia turístico para turistas preguiçosos", de Wladimir Kaminer. Título original: Ich bin kein Berliner - ein Reiseführer für faule Touristen)



A criminalidade tem vindo a estagnar há anos na capital alemã. As estatísticas criminais são alimentadas sobretudo por cenas de pancadaria, venda de droga, crimes de honra ou contra ela. Por vezes alguém rouba uma bicicleta, ou deita fogo à casa do vizinho, ou atropela uma velhinha. Os bandidos, gangsters, máfia russa ou larápios na rua são raros, e se calhar de nos cruzarmos com eles não os reconhecemos. O carteirista, espécie que faz parte de qualquer cidade turística que se preze, em Berlim encontra-se em vias de extinção, porque os berlinenses e os visitantes desta cidade só têm porcarias nas bolsas: lenços, batons, chaves, cigarros ou tabaco. Às vezes também se encontram nessas bolsas uma ou outra bretzel trincada, ou uma factura da electricidade por pagar.

Um carteirista contou-me uma vez que encontrar dinheiro numa bolsa berlinense é como ganhar o jackpot do loto. O máximo que ele conseguiu foi uma máquina fotográfica barata ou um telemóvel. Mas nem os telemóveis são bons de roubar porque, segundo reza uma antiga lenda de gatunos, os aparelhos emitem permanentemente um sinal, mesmo depois de ter tirado o cartão SIM e trocado a bateria. Desse modo, qualquer telemóvel pode ser facilmente localizado – o Estado polícia típico.

Em suma: em Berlim, os furtos não compensam. Ao contrário de Lisboa, por exemplo, onde há tempos fomos roubados logo no primeiro dia da viagem. Eu tinha comprado o guia turístico português “A metrópole do Atlântico. Longe dos circuitos turísticos” e escolhera para o nosso primeiro dia a “Rota 1. Um aspecto geral de Lisboa”. (A propósito: nesse guia estava escrito que a criminalidade em Lisboa tem vindo a estagnar nos últimos anos e quase não se nota.)
No extremo superior da rua Garrett encontra-se o café mais antigo da cidade, A Brasileira. Quem quer realmente conhecer Lisboa deve beber lá um café, um copo de vinho verde ou um sumo de laranja acabado de espremer.

Parecia-nos bem, e não queríamos de modo algum perder isto. O café estava cheio de turistas que provavelmente tinham lido o mesmo parágrafo no guia. Esfreguei os olhos, alheei-me momentaneamente do aspecto geral de Lisboa, e no mesmo instante o nosso saco berlinense desapareceu. Lenços, batons, uma câmara fotográfica barata, um porta-moedas com a imagem de Nossa Senhora e duzentos euros em notas – tudo perdido.

A empregada do café A Brasileira- que momentos antes conversara connosco num alemão irrepreensível, anotara o nosso pedido e perguntara se também queríamos comer alguma coisa - com o nervoso deixou de saber falar alemão. Só entendia português. Além disso estava muito surpreendida pelo desaparecimento do nosso saco, e explicou-nos que era a primeira vez que assistia a tal disparate de em Lisboa alguém levar alguma coisa de outra. Mas acabou por chamar a polícia.

Esta apareceu passados trinta segundos, como se tivesse estado o dia inteiro à nossa espera.

“Estão feitos uns com os outros”, suspeitou logo Olga, a minha mulher.

Os dois discretos polícias levaram-nos para o Rossio, uma praça muito bonita, que era o ponto seguinte da “Rota 1. Um aspecto geral de Lisboa”. Ali, numa loja de louças que ficava numa sala das traseiras, com uma montra enorme, ficava a esquadra da polícia. Pareciam ter-se especializado nos visitantes estrangeiros da capital portuguesa que se tinham fiado no guia “A metrópole do Atlântico. Longe dos circuitos turísticos”. Os polícias não tinham mãos a medir.

Estavam sentados atrás de cinco mesas, e tinham pequenas bandeiras cosidas na camisa. Cada bandeira representava um país cuja língua o polícia sabia falar. Havia um com duas, um com três e até um que tinha cinco bandeiras. Mas este tinha um ar muito cansado. À frente dos polícias viam-se pessoas bastante nervosas, provenientes de todo o mundo, em pé ou sentadas. Duas miúdas desatavam a chorar sincronizadamente de dois em dois minutos. Os rapazes fechavam os punhos e olhavam em volta com ar ameaçador. Um australiano subia e baixava as mãos repetidamente. A princípio, pensei que estaria a fazer alguma espécie de yoga para se acalmar. Na realidade estava a tentar descrever com toda a exactidão à polícia portuguesa o que lhe tinha sido roubado. A avaliar pelos seus movimentos, era alguma coisa muito grande e redonda, como um grande bolo em forma de coração.

À nossa frente estavam dois espanhóis que pareciam assassinos profissionais de Hollywood, perigosos e cheios de músculos. Mas afinal eram também vítimas a quem tinham roubado tudo, inclusivamente o guia turístico.

Escolhemos o único polícia com a bandeira alemã na camisa e fizemos com ele a lista - saco preto berlinense, conteúdo: um telemóvel, um pacote de lenços de papel, uma câmara fotográfica velha, um bilhete de identidade, as chaves de casa, um pacote de chicletes, um porta-moedas com a imagem de Nossa Senhora e duzentos euros.

O amável polícia explicou-nos que quase não havia furtos em Lisboa, e que nos raros casos em que isso acontecia, havia uma probabilidade de 90% de encontrarem rapidamente as coisas roubadas. Ao nosso saco até dava uma probabilidade de 99%. E a sua previsão confirmou-se: logo no dia seguinte telefonaram para o nosso hotel a avisar para irmos buscar o saco à esquadra do Rossio o mais depressa possível. Dirigimo-nos de novo à loja de louças, onde encontrámos de facto o nosso saco, por trás da montra enorme. Os lenços, as chaves, o telemóvel e até o porta-moedas com a imagem da Nossa Senhora – estava tudo lá, excepto a máquina fotográfica e os duzentos euros. Também desapareceram os talismãs que a minha mulher leva sempre no saco: a bala com que o pai dela abateu um urso em autodefesa, e a pequena pedra filosofal que me permitiu durante tanto tempo escrever histórias divertidas. E depois? Continuo a escrever. Penso que os nossos talismãs não vão trazer sorte nenhuma ao ladrão.

No demais, ficámos muito impressionados com Lisboa, e até sentimos alguma compreensão pelos larápios. Não se pode olhar para estes incidentes fora do seu contexto. Em Portugal o desemprego é muito alto, em vez de petróleo exploram vinho do Porto, o que não é coisa que qualquer um saiba fazer. Por isso, os portugueses jogam no totoloto como malucos – como se não conhecessem outra maneira de conseguir ganhar algum dinheiro. O azar é que perdem sempre. Neste momento o jackpot português já vai em muitas centenas de milhões de euros – e ninguém o ganha. Além disso, neste país há quase sempre sol. Uma luz atlântica incrivelmente forte mergulha a cidade dia após dia em tons de rosa e ouro. Em condições destas, até o mais honesto dos homens se podia tornar ladrão. Na nossa sombria Berlim dificilmente se passaria uma coisa destas – pelo contrário: aqui pode atirar o seu saco em todas as direcções, durante o tempo que quiser, por mim até pode ser no meio da multidão da Potsdamer Platz. Ninguém o rouba. E se roubar, nenhum polícia berlinense vai prometer que receberá o seu saco de volta, e muito menos com noventa e nove por cento de probabilidade. Contudo, se o seu saco for encontrado, ficará na mesma para sempre perdido em Berlim.


Nota:
Nos últimos três anos encontrámos cinco vezes uma nota de vinte euros nos Hackeschen Höfen. Caso lhe aconteça o mesmo, pode atravessar a rua, entrar nas inúmeras lojas dos arcos do S-Bahn do Hackesche Markt, e desembaraçar-se aí desse dinheiro.

6 comentários:

Leonor disse...

Excelente, Helena :)

Helena Araújo disse...

Leonor, vou dizer ao Speedy Gonzalez. Ele vai ficar todo orgulhoso...
;-)

Leonor disse...

Diz-lhe, diz-lhe e dá-lhe uma beijoca :)

Helena Araújo disse...

:-)

(saiu daqui a correr, feliz da vida)

sem-se-ver disse...

«Em Portugal o desemprego é muito alto, em vez de petróleo exploram vinho do Porto, o que não é coisa que qualquer um saiba fazer. Por isso, os portugueses jogam no totoloto como malucos – como se não conhecessem outra maneira de conseguir ganhar algum dinheiro. O azar é que perdem sempre. Neste momento o jackpot português já vai em muitas centenas de milhões de euros – e ninguém o ganha.»

:D

(mas na semana passada foi um tuga a arrecadar os 50 milhões... ;-) tens que actualizar o sinhori)

Helena Araújo disse...

Milagre! Milagre!
Vou dizer ao Kaminer que, mal se soube que ele ia a Portugal, começaram a acontecer milagres!
Isto só pode ser obra da Nossa Senhora que ia naquela carteira roubada...
;-)