06 setembro 2011

um domingo berlinense

I.

A data estava há muito marcada no calendário: se queria bilhetes para um concerto no princípio de Novembro, tinha de ir para a porta da Filarmonia no domingo 4 de Setembro. E fui. Cheguei quase uma hora antes da abertura da bilheteira, e já havia uma boa centena de interessados. Bom, pensei eu, concertos há muitos, não irão todos para o que me interessa.
Atrás de mim, duas senhoras falavam sobre a Filarmonia. E qual será o melhor lugar, e espera aí um bocadinho que eu vou ali fotografar o edifício. E eu a pensar "turistas? mas que estarão elas a fazer nesta fila, tencionam ficar em Berlim até Novembro?" e cheia de vontade de lhes contar coisas giras da arquitectura do edifício, mas aguenta-te e calateboca, que não és a Madre Teresa do turismo berlinense. Ah, isso é que era bom: nem dez minutos demorou, e já estávamos em animada conversa, e elas já sabiam tudo sobre a arquitectura do edifício (tudo o que eu sei, entenda-se), e eu já me surpreendera por elas terem vindo de propósito de Hamburgo a Berlim para comprar os bilhetes do meu concerto - uma delas festeja o aniversário nesse dia e quer fazer um fim-de-semana especial com os amigos. Contei-lhes das visitas guiadas à Filarmonia, marcaram logo uma para o grupo, e dei-lhes algumas indicações para o resto do dia. Deliraram com a ideia de ir assistir ao karaoke no Maeurpark, "ai era isso mesmo que nós sonhámos, algo realmente especial de Berlim". Por essa altura já o senhor da frente entrara na conversa, para lhes explicar as vantagens e desvantagens de cada bloco. O C, nem pensar: a acústica é boa, mas o som chega-nos sem volume. Os blocos K e H, se não tem cantores, são óptimos (ah, mais um apreciador dos dotes de bailarino e mimo do Simon Rattle!).
Chegou a nossa vez. Eu escolhi os meus bilhetes uns segundos antes das senhoras de Hamburgo, e levei quatro dos últimos bilhetes no bloco K. O H já estava esgotado. Ai, será que lhes estraguei a festa? No dia 4 veremos - se estiverem sentadas ao meu lado, é porque tudo correu o melhor possível.

II.

Mais um ovo de Colombo: quando as embaixadas se mudaram de Bona para Berlim, para poupar dinheiro os países escandinavos e a Islândia construíram as suas embaixadas num belo complexo comum, ao qual não falta uma "casa comunitária" aberta ao público, com espaço para exposições, concertos, seminários e até a cantina das embaixadas. Depois de alguém se lembrar disso, é óbvio. Porque é que Portugal e a Espanha...? Ou todos os países de língua oficial portuguesa...?
A quem interessar possa: fica no Tiergarten, a comida tem um toque escandinavo, e o almoço anda pelos 5 euros. Melhor que isso, só mesmo do outro lado da rua, no restaurante do Hotel Pestana (os almoços são ligeiramente mais caros, mas é um óptimo restaurante e não uma cantina self service).
No domingo havia lá festa, e que festa: no grande pátio interior, diversos stands mostravam produtos de design desses países, distribuíam informações, vendiam comidas típicas. Ao fundo do pátio tinham instalado um palco onde cada país exibia alguns dos seus melhores artistas. Por exemplo: cantores de ópera, ou artistas de circo. E  Felix Zenger, um beatboxer genial e sorridente, de uma simplicidade desarmante.

Felix Zenger assegura a - digamos - percussão deste trio:



E neste programa explica como trabalha - reparem bem na performance a partir do minuto 4:40 - não é que seja um grande cantor, mas é sensacional.





III.

No fim desta semana vou acompanhar durante alguns dias médicos brasileiros que manifestaram interesse no tema "Medicina e III Reich". De modo que passei a tarde de domingo em Sachsenhausen, entre o pavilhão de patologia e as barracas onde se relata o papel da medicina no sistema do terror. Quando uma pessoa pensa que já sabe tudo, o abismo revela-se afinal ainda mais fundo. Ainda mais insuportavelmente fundo: as pseudo-autópsias para iludir a escolha de uma causa de morte entre as oito previstas, a esterilização por motivos de etnia ou de suposta doença genética - realizada nos hospitais civis por imperativos legais, a castração dos homossexuais, realizada no próprio campo de concentração - também por motivos legais. Sim, que todo o sistema assentava na legalidade. A Justiça, essa, se por lá passou foi metida na barraca das mulheres trazidas de Ravensbrück para servirem no bordel do campo.


IV.
Trinta e cinco quilómetros a sul de Sachsenhausen, no Ku'damm, havia festa. Para comemorar o 125º aniversário desta avenida, um grupo francês passeava pela avenida animais fantásticos, com enormes bocarras, que se lançavam sobre o público em voo picado. Os abocanhados gritavam como se estivessem na montanha russa, os outros riam-se e faziam fotografias. Uma festinha simples, mas - como sempre - os berlinenses enchiam a rua, bem-dispostos e foliões.

Berlim.






 


Adenda, só por causa de um leitor atento:
- Em Sachsenhausen havia uma pequena câmara de gás, de 2,5 por 3,5 m. Pergunto-me por que motivo a terão construído, já que este era um campo de prisão e trabalho, e não de extermínio.

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- Deixei algumas linhas em branco, porque vou mudar muito de assunto.
- O domingo acabou com um Sousão 2004, da quinta do Vallado, que estava fantástico.As batatinhas assadas também, a carne - ahem - podia estar melhor. As uvas tintas encerraram muito bem a jantarada.


2 comentários:

cjs disse...

Heleninha, para não dizeres que eu leio tudo mas nunca comento, aqui vai. Foi por pudor que:
. não desmitificaste a idéia de que as câmaras de gás estavam só na Polónia e não em solo alemão?
. não disseste que tão profícuo dia acabou em beleza com um Sousão 2004?
E obrigado pelas referências elogiosas, depois mando-te o cheque :-)

Helena Araújo disse...

:-)
(eu quando aqui conto a verdade não costumo fazer-me pagar por isso)