23 setembro 2011

o Papa e eu em Berlim




Então foi assim: outro dia o Joachim estava a operar um senhor, e a meio da operação descobriu que era o secretário do arcebispo, e de faca na mão disse-lhe "eu precisava de 4 bilhetinhos para a missa do Papa..." e o outro gaguejou "sim... sim..." (Joachim: eu sei que tu sabes que eu sei que estou a inventar um bocadinho) e passados uns dias chegaram pelo correio os bilhetes para o relvado do Olympia Stadion. De modo que ontem lá fomos. O estádio cheio de gente que procurava o seu lugar no segundo anel, e eu a descer pela escadaria monumental que dá para o relvado, e a avançar pelo campo, e nunca mais vinha o meu lugar, até que finalmente o encontrei, bem à frente. Digamos que eu estava no lugar do penalty e a Angela Merkel no da baliza. Mas agora não me venham com perguntas esperançadas: é que nem tinha bola, nem tenho pontaria.
Mas aquela faquinha do Joachim faz milagres, é só o que vos digo.

Por ter andado a resolver problemas vários não pude assistir ao discurso do Papa no Parlamento. Enquanto ele falava, ia eu no comboio, apertada por um grupo de polacos que trazia uma imagem enorme da Virgem. Quase saí daquele para apanhar o comboio na direcção contrária, para muito longe daquilo tudo.
Quando cheguei ao estádio já o Papa vinha a caminho, e nos ecrãs decorria o programa de entreter o pessoal enquanto se espera. Um entrevistador apertava um membro da organização, sem dó nem piedade: "Consta que só o altar custou quase meio milhão de euros. É verdade? Justifica-se?"

Ao mesmo tempo ouviam-se aplausos frenéticos vindos das tribunas em frente às quais passava o novo arcebispo de Berlim. Eu olhava em volta, via com alguma estranheza as mulheres com o seu dirndl festivo, as bandeiras da Baviera, os cachecóis no ar, as imagens e os santinhos - e sentia que não tinha nada a ver com aquilo. À minha frente deslizavam dezenas de bispos, mais o pessoal de capa e estranho barrete típicos de obscuras associações de estudantes.

E de repente o estádio rebentou de excitação. Tinha entrado o Justin Bieber.
Ah, não, afinal era o Papa. Mas pela reacção do público juro que parecia o Justin Bieber. Ou os Beatles.
O papamóvel deu a volta ao estádio, devagarinho, de modo que eu pude vê-lo duas vezes a meia dúzia de metros de mim (sim, bastou-me ir de um lado para o outro do relvado), e lá ia ele, sorridente, acenando a todos, beijando as crianças que lhe enfiavam pela janela, benzendo as imagens e esculturas que erguiam para ele (e eu a pensar que já não temos idade para objectos transferenciais, nem fetiches destes).
Quando voltei ao meu lugar passei por um grupo de irmãos de Taizé, provavelmente os que estão a preparar o encontro de juventude do fim do ano, que estavam sorridentes e placidamente sentados, alheios àquele arraial. Por uns momentos pensei "isso mesmo, são dos meus!", mas depois caí em mim: eu era parte do arraial, até era a que corria com mais eficiência de um lado para o outro do relvado. 

Depois vimos o Papa em frente a uma mesa onde estava o livro de honra da cidade. Ao seu lado estava Klaus Wowereit, o recentemente reeleito presidente de Berlim. Que é homossexual e vive há largos anos com o seu companheiro, e diz que "es ist gut so". A linguagem corporal do Wowereit foi um dos momentos mais bonitos daquela tarde: atento, caloroso, amistoso. Vi uma ponte entre aqueles dois homens, e gostei.

Antes da missa começar fomos informados de que ia começar uma missa, e pediram-nos para nos abstermos de bater palmas, gritar "be-nedetto-oh-oh-oh", fazer "la ola", e assim.
Ainda bem que avisaram. A idade média do público naquele estádio era várias dezenas de anos inferior à dos que vejo todos os domingos na missa - desconfio que estava ali muita gente que raramente terá visto uma igreja pelo lado de dentro, e não saberia bem a diferença entre uma missa e um concerto rock.

Começou a chover em bátegas fortes. Distribuíram rapidamente capas de chuva ao pessoal que estava no relvado - aos VIPs. Para que conste: agora tenho uma capa da chuva igualzinha à da Angela Merkel! Hehehe. Mas fui mais rápida a enfiá-la. Aliás: eu e todos os outros. Igual a si própria, a chanceler alemã só começou a pôr a capa depois de todos já o terem feito, só quando já estava irremediavelmente encharcada de chuva.

Partes da missa foram ditas em latim. Ai a minha vida a andar para trás.
A música escolhida atravessou um milénio: desde o gregoriano, passando pelos cânticos ecuménicos de origem luterana, ao smooth jazz. Às vezes senti-me no hall de um hotel, ou a serpentear pela highway number one ao som do KKSF. Se me deixassem mandar teria usado outros critérios, mas como não me deixam mandar...
Enquanto cantávamos, os ecrãs gigantes mostravam os políticos: deu para ver que a primeira dama é católica praticante, sabia todos os cânticos de cor, enquanto a chanceler nem os da sua própria igreja conhece. Filha de pastor, e isto? É bem verdade que casa de ferreiro...

A homilia do Papa começou bem, e eu caí numa profunda meditação, da qual saí quando o Joachim me deu uma cotovelada. "Adormeceste?" "Não, que ideia! Ouvi as palavras todas, uma por uma!" - e era a pura verdade, ouvi-as todas, mas por algum motivo não consegui encontrar o elo de ligação entre elas. Talvez seja caso para ir consultar um neurologista.

As orações dos fiéis foram ditas por estrangeiros. O africano que fez a oração pelos políticos alemães disse-a de olhos fechados, muito concentrado. Muito bonito. Queria vê-lo mais tempo, mas a câmara saltou para a cara da Merkel, dos ministros, do presidente da república. Estavam atentos, valha-nos isso.

Depois veio a comunhão. Infelizmente não mostraram se o presidente Wulff e a sua belíssima Bettina, com quem casou depois de se divorciar da primeira mulher, foram comungar. Também não mostraram o Wowereit, que é de uma família católica. E muito menos revelaram se a Angela Merkel, que é protestante, comungou. Que chatice, tanto mediatismo tanto mediatismo, para afinal omitirem o essencial.
O Papa deu a comunhão a trinta pessoas escolhidas como amostra: jovens e velhos, pobres e ricos, saudáveis e doentes, alemães e estrangeiros. Como se já não bastasse a parte da missa em latim, as pessoas ajoelhavam em frente ao Papa, um acólito punha a bandeja de ouro por baixo da sua mão, a pessoa recebia a hóstia na boca. Quando chegou a vez do Wolfgang Thierse (o que eu gosto deste homem!) houve uma pequeníssima luta de poder, porque ele fazia questão de receber a hóstia na mão. Ganhou ele, e teve um efeito pedagógico, porque os seguintes puderam comungar como preferiam, sem partes gagas de "abra a boca, ó! e ponha-me essas mãozinhas para baixo".
No fim vieram os das cadeiras de rodas - um rapazinho, uma velhinha - e depois veio uma mulher jovem transportada numa maca. Esse foi o meu momento redentor: uma mulher com ar de quem não tem muita vida pela frente a fazer uma festa carinhosa no braço do Papa após receber a comunhão, o sorriso que ele lhe deu, o sorriso dos homens que a carregavam.
Esqueci a feira, as imagens, o smooth jazz, tudo. Só aquilo interessava: aquele momento de encontro, entre a fragilidade e a alegria.

Se me deixassem mandar, não teria feito nada assim. Nem altar de meio milhão, nem santinhos, nem capas e barretes, nem aplausos frenéticos para o Papa. O meu primeiro impulso seria correr com essa malta toda para fora do templo, para ficarem só os que têm lugar no meu oásis da Igreja Católica. Ora: ainda bem que não me deixam mandar, porque a verdadeira sabedoria consiste em arranjar espaço para todos. E naquele estádio houve espaço para todos. Também por isso teve de ser uma celebração heterogénea, em alemão e latim, com gregoriano e jazz, com gente como eu ao lado de senhoras de dirndl. É a nossa Igreja: católica.

No fim da missa os políticos saíram rapidamente, passaram a dois metros de mim. A Angela Merkel afinal ao vivo tem uma figura bonita, e eu a pensar que lhe retocavam sempre a imagem. Mas a melhor de todas era a Bettina Wulff, ai, a Bettina Wulff.

No comboio de regresso parecia o Pentecostes: uma algarviada de gente a falar em línguas diferentes. É o que dá  quando o Papa vem a uma cidade na qual 1 em cada 5 católicos é estrangeiro, e que fica a 80 km da Polónia.

12 comentários:

Teresa disse...

Só estive em duas Missas Papais, e não sei explicar-te a emoção e o fervor de que somos tomadas.

Quanto aos bilhetes: achas mesmo que alguém recusaria alguma coisa a um senhor que tem um bisturi na mão? :))

Mery disse...

Adorei teu relato, se me deixassem mandar eu faria o mesmo que tu...
Quando vou na igrejinha aqui perto, eu vejo sempre os mesmos rostos, não tem tanta ostentação, nem figuras ilustres que querem aparecer...mas é assim que eu me sinto bem.
Beijinhos da Mery.

Paulo disse...

Obrigado pela reportagem. Eles lá no Spiegel ainda não sabem que tu existes, pois não?

(Gostei particularmente dos momentos do Wowereit e do Thierse.)

Helena Araújo disse...

Teresa,
eu a mim a emoção e o fervor não me assistem no meio de um estádio com 70.000 pessoas. Mas também aí: as pessoas são diferentes.

Mery,
pois é, os oásis que a gente tem...

Paulo,
de nada - para ti é sempre um prazer! Eu também gostei desses dois momentos. E o da mulher na maca.
Eles lá no Spiegel não sabem ler português, são uns ignorantes que não sabem o que perdem! ;-)

Teresa disse...

Helena,
Da de 1991 não tenho fotos. A do ano passado não foi num estádio:

http://gotaderantanplan.blogspot.com/2010/05/missa-papal.html

Helena Araújo disse...

Teresa, já tinha lido esse post na altura. Muito bonito!

Quanto ao bisturi: é óbvio que o Joachim não fez isso durante uma operação. Isso sou eu a inventar - já me conheces. E desta vez até tive o cuidado de avisar no próprio post.

maria disse...

Olá, Helena.

Apreciei imenso a tua reportagem (embora refira que não faço odeia de quem são algumas pessoas que nomeaste), mas tu és mesmo boa nisto! :)
Eu apenas acrescento uma nota pessoal: cada vez é maior a minha dificuldade em identificar esta Igreja dos estádios (ou dos templos)com o Evangelho.

Helena Araújo disse...

Maria, :-)
Se queres que te diga: naquele estádio eu tive dificuldade até de me identificar comigo própria! Não estava nem fora nem dentro daquilo.

Mas acredito que cada um tem o seu modo pessoal de se encontrar com a sua fé, e por isso não vou criticar que o Papa faça coisas destas, ou que as pessoas reajam à sua aparição como se fossem adolescentes elas e uma estrela do show business ele.

maria disse...

"naquele estádio eu tive dificuldade até de me identificar comigo própria", penso que sei identificar o que queres dizer.

Helena, para mim, o que está em causa não é a maneira de cada um (até do Papa)se encontrar e expressar a sua fé. Mas como a Igreja "oficial", digamos assim, marca a sua presença no mundo. Focaste alguns pontos particulares como os gestos que acompanham o rito da comunhão. Mas que comunhão exprimem?

Helena Araújo disse...

Maria,
penso que uma parte da questão é a diversidade do mundo. E o modo com a Igreja deve interagir com essa diversidade. Há muito quem goste disto mesmo - olha só para os polacos que trouxeram imagens enormes de Maria para serem benzidas pelo Papa.
Eu fico-me pelo meu oásis dentro desta Igreja (e que comunhão exprime esta minha opção?). Um oásis que não tem nada a ver com uma missa num estádio.
(e logo em que estádio: o que foi construído para os jogos olímpicos do Hitler...)

Na véspera desta missa tive um encontro com amigos católicos. Só um deles ia à missa, além de nós. Estivemos a falar do Papa, e justamente da maneira da Igreja estar no mundo, e alguém disse: "os gays e os divorciados que se casam de novo são sujeitos permanentemente a humilhações horríveis na sua própria comunidade. Mas ninguém se lembra de ameaçar de excomunhão o director de um banco que despede milhares de pessoas no ano em que faz lucros astronómicos!

Helena disse...

Helena, obrigada pela sua partilha e pela forma desempoeirada como fala da sua fé. Fiquei com tanta pena de não poder ter acompanhado esta visita.

Estive com o Papa em Colónia durante as Jornadas Mundiais da Juventude e foram inesquecíveis.

Bento XVI não terá talvez o carisma do seu antecessor, mas quando fala, meu Deus quando fala conquista a razão e o coração.

Helena Araújo disse...

Olá homónima,
:-)
Eu não me sinto assim tão próxima deste Papa. Gosto de algumas coisas que ele diz, mas não me chega ao coração.
Lá está: esta Igreja está cheia de gente muito diferente. E Deus continua a distribuir as nozes segundo critérios muito estranhos... quantas pessoas não teriam feito tudo para ter o meu lugar naquele estádio?