02 junho 2011

inquérito Nova Evangelização

Repasso aqui as minhas respostas ao inquérito que o Religionline está a fazer, no contexto do debate sobre a Nova Evangelização.

1 - No decreto de criação do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização, o Papa refere as "transformações sociais" das últimas décadas e as suas causas complexas: progressos da ciência e da técnica, ampliação dos espaços de liberdade, mudanças económicas, miscigenação étnica e cultural, interdependência entre os povos. Que consequências tiveram estas transformações sociais na experiência religiosa? Só o "deserto interior" de que fala o Papa nesse texto?

A expressão "deserto interior" surpreendeu-me de tal modo que cheguei a
desconfiar que fosse erro de tradução ou de palavras fora do seu contexto...
Mas parece que não. Decididamente, o Papa e eu não frequentamos os mesmos
lugares e a mesma História. O meu mundo está cheio de pessoas que, não sendo
necessariamente cristãs, se empenham na procura de um sentido e a traduzem
em gestos de humanidade.
Deserto interior? Estou com o Padre Américo: "não há rapazes maus".
O facto de não chamarem Jesus Cristo à fonte que inspira os seus gestos, e
não irem à missa periodicamente, não significa que as pessoas vivam em
"deserto interior". Inversamente, frequentar a Igreja e alardear a Fé não é
garantia de nada - como prova, aliás, o modo desastroso como a Hierarquia
lidou com o horror da pedofilia.
Eu teria até um certo pudor em usar estas palavras a partir do interior da
Igreja. Não é preciso vasculhar muito no seu caixote de lixo para encontrar
situações de deserto interior que emanam da própria ortodoxia católica. O
exemplo habitual é o da Inquisição mas, infelizmente, há muitos outros, tais
como o caso Mortara, em meados do séc. XIX, ou o caso da educadora de
infância de um jardim infantil católico, na Alemanha de fins do séc. XX, que
foi despedida por estar grávida sem ter a situação familiar esclarecida (não
se queria dar maus exemplos às criancinhas, compreensível...).
A terrível perversão das "criadas" e dos "afilhados" dos padres, com a qual
a Igreja tem convivido pacatamente ao longo dos séculos, é um cruel exemplo
dos limites daquele diagnóstico: algumas das transformações sentidas como
ameaça (a revolução sexual, a moral sexual, os chamados ataques à família
tradicional) criaram nas pessoas uma consciência da sua dignidade e da
justiça que não permite continuar a aceitar passivamente escândalos como
estes.
E vou mais longe: estas transformações sociais são uma excelente
oportunidade de renovação da Igreja, e um desafio assustador. No espaço de
liberdade, exigência, capacidade de escrutínio e crítica que é o nosso mundo
actual, ninguém deve obediência, generosa tolerância e muito menos
respeitinho à Igreja Católica. Mas como pode esta - lugar de pecado como o
próprio mundo - ser exemplar de modo a conquistar o respeito de um mundo
livre, profundamente crítico e que a sente como um elemento hostil?


2 - Como é que a Igreja pode fazer uma leitura dos sinais dos tempos de modo a acolher as marcas de Deus que estão presentes na sociedade? A secularização pode ser vista como um sinal dos tempos? De que forma?

Olho à minha volta, e vejo que alguma espécie de Bem toca os gestos das
pessoas. Vejo milhentos impulsos de generosidade e humanidade, inúmeros
voluntários que oferecem muito do seu tempo para servir os necessitados, a
dedicação com que tantas ONG tentam tornar o nosso mundo mais justo e mais
humano. Vejo no Burning Man (provavelmente o festival mais louco dos EUA)
que o espaço da meditação e espiritualidade é um dos mais frequentados. O
Deus em que acredito anda por aí, e suspeito até que se diverte com o uso de
heterónimos.
Talvez a secularização seja sinal de um Espírito Santo feito tempestade:
quando a sociedade se emancipa e confronta a Igreja com as suas próprias
contradições e fragilidades, obrigando-a a um esforço de renovação, a
sacudir a tralha acumulada e anacrónica, a concentrar-se no único fulcro
possível: Jesus Cristo.


3 - A expressão "nova evangelização" tem-se prestado a vários equívocos e a interpretações diversas. Tem sentido utilizá-la? Como poderia ser definida? Deve ser vista apenas como uma forma de a Igreja sair das suas crises ou também como desafio a repensar-se a estrutura eclesial?

"Nova evangelização"?! Eu gostava da antiga, aquela que se resumia à frase
"vede como eles se amam".
Em todo o caso, uma evangelização não pode ser uma operação de cosmética, de
gestão da crise, de reacção. Num mundo em que uma insuportável transparência
anda a par com exigências e críticas implacáveis, só fará sentido se for um
esforço profundo e muito honesto de se reencontrar com Cristo no coração do
nosso tempo. Um esforço que atinge tanto a tradição e as estruturas internas
da Igreja como a sua maneira de estar e agir no mundo.


4 - Também no decreto de criação do Conselho, o Papa cita a sua primeira encíclica, Deus Caritas Est: "No início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, com isto, a orientação decisiva." A Igreja não tem estado demasiado centrada numa "decisão ética" reduzida a uma moral ou em questões de disciplina e de regras internas e, menos, na Pessoa de Jesus Cristo?

Eu ia dizer que sim, que ça va sans dire, mas depois lembrei-me que também
sou Igreja, e que alguns padres e bispos que muito admiro também são Igreja.
A Igreja somos nós todos, é um lugar de imensa diversidade e pluralidade de
experiências. Se uns se prendem mais à "decisão ética" outros entregam a
vida ao serviço do encontro com Jesus. Se uma parte da Igreja endurece num
fundamentalismo dogmático, outros (e com certeza também alguns dos
"fundamentalistas") vão ao encontro daqueles que vivem na mais horrível
miséria, levam a luz de Cristo ao mundo, em gestos simples e despojados.
Penso na Comunidade de Sant'Egídio, nas Missionárias da Caridade, na
Comunidade de Taizé, e em tantos outros exemplos.


5 - O Papa diz que falar de "nova evangelização" não implica que haja "uma única fórmula igual para todas as circunstâncias". A Conferência Episcopal Portuguesa lançou um debate sobre estratégias e métodos de evangelização para concluir em 2011. Neste quadro, que "fórmulas" deveriam ser encontradas para Portugal? Que prioridades e com que linguagem?

Estrangeirada que sou, não me peçam para falar sobre Portugal. Dou, em vez
disso, um resumo de um debate a que assisti recentemente num grupo de leigos
católicos alemães, sobre caminhos de futuro para a Igreja:

Dois problemas centrais atravessam a Igreja: a crescente polarização, sobre
a qual pouco se tem reflectido, e a ausência da cultura do diálogo (nas duas
vertentes: horizontal e vertical) que por vezes chega a tomar a forma de
bloqueio. A Hierarquia padece de uma arrogância que a impede de reconhecer a
igualdade dos cristãos e de aceitar que a Igreja é antes de mais o povo de
Deus.
A renovação, necessária e inadiável, passa pela igualdade, pelo respeito
mútuo, pela participação de todos. Só assim se conseguirá uma ordem interna
estável e se ganhará credibilidade perante o exterior.
Motivos para os bloqueios:
- imagem teológica que os bispos têm de si próprios
- passividade dos leigos, que aceitam essa autoridade dos bispos sem
questionarem quais são as suas bases, esquecendo que os portadores primários
de autoridade são as comunidades e não os bispos
- passividade dos leigos, que não estudam as escrituras e não se entendem
como sujeito actuante da sua própria Fé

A Igreja e o Reino de Deus (que é hoje o mundo secularizado): o mundo fugiu
da Igreja porque foi maltratado por ela, que, ao concentrar-se em si própria
esquecendo os que sofrem, provocou ainda mais sofrimento. A Igreja tem de se
voltar para o mundo. Cristo fala do Reino de Deus, e não da Igreja. Esta não
é um objectivo em si própria, existe para cumprir uma missão importante. O
diálogo, se não for entendido como serviço, não passará de umbiguismo e
auto-reflexão.

Visões de futuro:
- Diálogo com as comunidades, o ecumenismo, o mundo: é necessário tomar
todos em consideração para entender o alcance da necessidade de reformas
dentro da Igreja.
- Fim da profunda discriminação das mulheres. O que é que a Igreja não
perdeu em todos estes séculos em que arredou do seu seio um grupo tão
importante? Só quando houver igualdade homem/mulher dentro da Igreja será
possível esta ter um olhar abrangente e equilibrado sobre o mundo.
- Estatuto das comunidades: o consenso é indispensável. O diálogo não deve
ser orientado pela Hierarquia, mas realizado com a participação de todos em
condições de igualdade. Todas as comunidades são sinodais e conciliares.
- Já não vivemos no feudalismo e no absolutismo: que autoridade pode ter um
bispo que não foi escolhido pela sua comunidade?
- Os leigos têm de se empenhar mais na Igreja. Não basta dizer mal dos
padres e da Hierarquia, há que assumir a sua quota parte de responsabilidade
e agir: "onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome".
- Confiança nos jovens: nas suas capacidades teológica, de solidariedade e
de empenhamento.
- Desclericalização dos cargos/serviços.
- Conexão ao tempo presente, solidariedade com os que sofrem, opção pela
pobreza.
- Diálogo público, abrangente e transparente. Sem se esquivar às questões
mais incómodas, sem temer (a renovação exige a coragem de experimentar),
realizado em conjunto (procurando especialmente a participação dos mais
jovens), procurando soluções parcelares que evitem o enquistamento em
trincheiras ideológicas, e sem desistir. Acreditar sempre que o espírito de
Jesus Cristo nos acompanha neste caminho.

6 comentários:

Lucy disse...

Ai, Helena, se eu pudesse votar no próximo Papa...(Preferia que lhe chamassem Papa ou Papisa?)

Helena Araújo disse...

Lucy,
ponha-se com essas e depois queixe-se que é excomungada na minha leva! ;-)

Rita Maria disse...

Eu também voto em ti, se conseguires tempo para seres papa, primeira-ministra e minha amiga. Bolas, até fiquei um bocadinho inchada.

Ana Paula disse...

Muito bem! Não quererás tu transformar o teu texto-resposta numa petição para a gente assinar por baixo?

Xx disse...

Excelente texto, Helena. Obrigada.

Helena Araújo disse...

Vocês são uns brincalhões.
Não é difícil escrever assim. Difícil é estar dentro da estrutura de poder da Igreja e ter de gerir e conciliar todas essas ondas antagónicas.
Não queria ser bispo, e muito menos Papa.