06 maio 2008

português neutro

Eu, pecadora, me confesso:
passei oito anos da minha vida a inventar uma língua chamada português neutro, numa empresa que queria uma tradução única para utilizar em Portugal e no Brasil.
E eu, acabada de nascer, tão ignorante como bem-intencionada, achei que, com jeitinho, era possível.
Pensava que bastaria usar o acordo ortográfico de 1990 (sim, senhores: o mesmo que agora se discute), e tudo acabaria em bem.

Hoje, do alto da minha experiência, vos digo: não funciona.
O problema não é o modo como se escrevem as palavras, mas o seu significado.

Sem pensar muito, ocorrem-me logo vários exemplos em que tropecei nessa época negra da minha linguística:
- Um armazém, em Portugal, é uma área onde se guarda mercadoria; no Brasil, é uma mercearia de portugueses. Que palavra usar então para a área onde se guarda mercadorias? Almoxarifado? Depósito? A partir do momento em que tentamos soluções de mínimo denominador comum, a língua transforma-se numa construção artificial alheia à realidade de cada país.
- O célebre file inglês é um ficheiro em Portugal e um arquivo no Brasil. Não tem solução.
- O time brasileiro (team) e a equipa portuguesa (equipa nem aparece no Aurélio, só existe equipe). Forma-se um grupo?
- Outras armadilhas de palavras heterossemânticas: bilião, fazenda, cadastrado, adeus, constipação, miúdos, terno. E muitas mais. Fazendo uma pequena incursão nas brejeirices: a palavra bicha já desapareceu dos meios de comunicação social portugueses, mas vamos também evitar trepar, pinto e grelo?

[Adenda (em 8.05) aos exemplos: por muito que unifiquem a ortografia, nunca será possível escrever um livro de culinária para ser usado simultaneamente no Brasil e em Portugal. Alguém sabe o que é um limão, no Brasil? E um limão galego? Eu ainda não consegui entender.]


O acordo ortográfico vai simplificar um pouco? Talvez, mas também complica:
Preciso de me concentrar para não ler afeto e respeto como afêto e respêto. (Ora aí está o alentejano promovido a português neutro.)
Ação pede a pronúncia de cação, receção parece recessão.
E porque é que o h cai da humidade, mas se mantém nos seres humanos e nos homens? (quer dizer: espero que se mantenha...)


Não adianta unificar a ortografia das palavras para termos a sensação que se trata de uma língua única. Mesmo que estejam escritas da mesma maneira, será sempre necessário conhecer e saber descodificar as palavras usadas pelos outros. Por isso, penso que a única solução é informar-se sobre as diferenças. Aprender mais sobre a nossa língua e sobre a língua portuguesa falada nos outros países. Assumir, por muito que custe aos heróis do mar nobre povo, que não há um português universal, mas um "portugalês" e um "brasileiro" (do português falado nos outros países não falo, porque não sei).

Fazer um acordo ortográfico que suprime alguns acentos e consoantes mudas, tira aqui hífens para os acrescentar ali, e pensar que essas alterações confusas de cosmética são um passo importante para unificar a língua, é de uma ingenuidade que se poderia dizer ridícula se não tivesse tantos custos.

Vão por mim: só nos faz bem aprender mais e exercitar permanentemente o cérebro. Aprender os falsos cognatos, manter as nossas consoantes mudas e os acentos de todos, inclusivamente o belíssimo trema brasileiro (eqüidade, que equilíbrio de palavra!), a eterna dúvida entre o ç, o ss e o s, tudo isso são bons exercícios para fintar o Alzheimer. Isto nem é só uma questão de ortografia, é até um caso de saúde pública...

Também não concordo com simplificações da ortografia para facilitar a aprendizagem. Isso equivale a, desculpem a ofensa, fazer uma hortografia: ortografia para nabos.


Tudo isto para dizer que sim, também assinei o manifesto em defesa da língua portuguesa. Embora por razões diferentes das que estão lá escritas.

***

Na altura em que eu inventava um português neutro, assistia a discussões dos tradutores para espanhol. Pelo que entendi, a Real Academia Española, sedeada em Madrid, decide a evolução do espanhol no mundo inteiro. Os sul-americanos protestavam, mas manda quem pode...
De onde se conclui que a culpada dos nossos problemas linguísticos é a República e o seu pai de todos os males, o regicídio... ;-)
Que um dia ainda se chamará rejissídio. ;-)

1 comentário:

Henrique Cavalcanti Serejo - Arquiteto e Urbanista disse...

Muito interessante esse texto.. o encontrei por acaso ao buscar resultados sobre sotaque neutro brasileiro e encontrei esse, mais abrangente, porém discordo um pouco, pois sou brasileiro e demorei a notar que esse texto foi escrito por alguem de Portugal, creio que somente duas palavras em todo o texto me são novas, como 'nabos', que para nós não passa de um legume, mas como você disse, Armazém também usamos como vocês, como existem armazéns nas fazendas para guardar grãos e ração dos animais. Eu acredito que realmente há diferenças gritantes e que mudem mesmo o significado, isso muito forte no português do dia a dia, mas creio que o português escrito em sua norma padrão é compreensivel, e o acordo acho bom por unificar essa escrita e aproximar os povos, ganha-se com isso, pois os produções bibliográficas se tornam mais abrangentes, já peguei livros portugueses que eu demorei notar diferenças ou que sabendo se tratar de um livro português não conseguia achar algo que apontasse isso... mas sem dúvida, escrever para ambos os públicos exige atenção redrobrada com alguns termos, inclusive temos diferenças gritantes dentro do nosso próprio pais, quem dirá com outros...